sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Delírios do “artista” quando jovem

Por Evaldo Magalhães

Uma das cenas mais excitantes que me ocorria sempre, assim, quando pensava em cenas excitantes, claro – momentos não tão raros, mas alguns momentos, apenas –, era a de uma mulher lindíssima abraçando e beijando outro cara e, tipo, olhando pra mim, por cima do ombro ou da cabeça dele – enquanto ele, esse cara, tentava pegar os seios dela ou estava simplesmente dando um malho, como dizem. E ela olhava pra mim sem o tal cara perceber e eu ficava louco, porque ela tinha aquela cara sacana, sabe?

Tentando explicar o porquê dessa cena ser tão excitante, eu diria que tem a ver com uma quebra instantânea daquele mito besta de que mulher é diferente de homem nessas coisas. De que mulher, mesmo que de um modo geral, quando gosta de um sujeito não fica por aí lançando olhares lascivos a torto e a direito. Tem muita gente boa, inteligente, esclarecida que eu conheço que pensa isso de mulher. Bobagem, eu digo sempre. Elas ficam olhando sim. Igualzinho à gente.

Eu sei, e sou tão convicto ao dizer que o contrário é bobagem, porque constantemente eu via essa cena, interferia nela e me esbaldava, lá nos anos 80. Quase sempre que saía à noite, ia a uma festa ou a um bar ou mesmo quando andava pelas ruas, de dia, isso me acontecia. Estava eu lá, parado ou caminhando, passeando os olhos pelo ambiente, quando me deparava com um casal aparentemente apaixonado, dando aquele amasso e, também aparentemente, concentrado – ambos – no que estava fazendo.

Daí eu fazia de propósito! Parava e ficava olhando pra moça. Procurava um ângulo legal pra poder ficar em fogo cruzado com os olhos dela, caso eles encontrassem os meus, e também pra não dar tanto na cara assim, pro sujeito que dividia o momento com ela, que eu estava paquerando a mulher dele, ainda mais numa hora tão esquisita, não é?

E era batata! Ou quase, quase sempre. De cada dez vezes que fazia isso – mesmo eu não tendo anotado uma a uma, dá pra dizer assim, porque é importante citar números; as pessoas são tão bobas quanto a tudo, em sua maioria, que números as convencem, veja você... –, de cada dez vezes que fazia isso, em seis ou sete as mulheres correspondiam aos meus olhares. Sabe aquelas caras sacaninhas? Caras de mulheres sedentas por algo diferente...

Eu não era nenhum garanhão, não. Era um cara alto e coisa e tal, mas não tinha físico de atleta, e ostentava uns traços bastante comuns. Mas elas olhavam. Era como que se se sentissem poderosas ali, com os caras as beijando e um outro sujeito as cobiçando. Vaidade, eu pensava, às vezes. Mas a intensidade com que elas flertavam comigo era tanta que logo percebi que deveria ser algo mais. Vontade mesmo de estar comigo, um outro, enquanto sarravam com os namorados ou companheiros ou, assim, sei lá, os amantes delas.

E não foram raras também as vezes em que, enquanto elas beijavam os sujeitos, eu passava meu número de telefone, só mexendo a boca, como que pra elas fazerem leitura labial, ou mostrando os números com os dedos. Era engraçado. Mulheres, de um modo geral também, têm memória muito boa!

E se acumularam ocasiões em que acabei transando com elas, porque me ligaram e eu joguei aquela conversa mole, mas extremamente cativante, pras que topassem transar. É, acabei comendo essas mulheres, pensando naquelas caras lindas de sexo em estado bruto que elas faziam pra mim, quando estavam com os companheiros.

Foi brincando disso aí que conheci a Maíra.

Eu estava no auditório da Fafich, lotado de estudantes e desocupados. Haveria lá uma palestra sobre meio ambiente – assunto não muito comum naquela época, infelizmente – quando avistei aquela morena linda de pernas grossas, pelos louros nos braços e barriga malhada, calça justa e blusinha hering apertada com uma estampa do David Bowie, beijando um espinhento qualquer, na terceira fila. Parecia aluna de psicologia. Mas era de história.

Eu estava numa cadeira próxima, comentando com um colega que a audiência era grande naquela tarde, quando a vi. Ela e o namorado.

E pensei assim: vou ficar olhando pra ela, o ângulo está bom.

Maíra estava no colo do espinhento e ele lambia o pescoço ou a orelha dela, o rosto escondido naquela cabeleira negra brilhante que ela tinha. De olhos fechados, ela parecia muito excitada, mas caiu na besteira de abri-los – eram verdões – e mirá-los em mim. Eu sorri, juro, com um ar de inocência, por achar aquele sarro dela e do cara legal, por pensar “poxa, eles se amam”. Mas era só um teste.

Ela também escancarou um sorriso, só que bem diferente do meu, como eu esperava.

Maíra mostrava os dentes branquinhos e certinhos e apertava os músculos em volta dos olhos, que brilhavam pra mim, tanto quanto o sorriso. Da boca, saiu devagarinho a língua, que correu pelos lábios e os molhou, ela sempre com aquelas esmeraldas me dizendo algo como “eu quero você”. E o namorado lá, afogado nos cabelos dela.

Aí, claro, mudei meu jeito de sorrir. Cruzei as pernas – porque não me sentia mais à vontade perante os colegas, você entende –, e comecei a mandar mensagens mentais pra ela, sabe?

Com cara de degenerado, tipo.

A telepatia era mais ou menos assim: “Imagina minha língua nos seus pés, depois nas suas canelas, nas coxas, no colo, no umbigo e descendo de novo, depressa, pro seu baixo-ventre, enquanto minhas mãos nervosas apalpam você inteira e, no final, quando minha língua te invadir, agarram suas nádegas com força”.

Óbvio que não sou telepata, nem sei se isso existe, mas ela pareceu entender.

O trabalho do espinhento na orelha e pescoço dela também ajudava, claro, e eu via que Maíra delirava de prazer, sem tirar os olhos de mim.

Isso tudo durou alguns minutos e terminou com um grito escandaloso dela.

“Aaaaaaaaaai.”

Gozou, eu percebi.

O companheiro saiu do meio dos cabelos dela, assustado, viu que ela olhava pro lado e sorria pra alguém e virou-se. Eu desviei o olhar, que não sou bobo.

Quando a palestra começou, um dos caras convidados falava sobre uma fábrica de cimento perto de Beagá, sobre moradores da região que diziam estar ficando doentes com o pó que caía sobre suas casas e impregnava tudo, e Maíra, sentadinha agora ao lado do espinhento, não parava de lançar olhares com segundas intenções e de dar mexidinhas de nariz pra mim.

Fui esperto e me ofereci como voluntário, a pedido de um professor lá, não lembro qual, pra recolher perguntas em pedaços de papel e passá-los aos sujeitos da mesa. O dela foi o primeiro, com nome e o número do telefone. Ela me perguntava se eu queria namorar! Eu ri, meio sem graça, fazendo gênero.

Duas horas depois que a palestra havia terminado, eu liguei pra ela, de casa. Oi, eu disse, sou o sujeito da palestra de hoje e sim, eu quero. Daí saímos no dia seguinte, tomamos laranjada e comemos pães de queijo em uma lanchonete perto da Fafich mesmo, enquanto conversávamos sobre a vida.

No fim de semana seguinte, a gente transou. E ela superou as expectativas, sabe?

Foi, tipo assim, a mulher mais gostosa da minha vida.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Vai uma aspirina aí?

Por Evaldo Magalhães


Metade dos anos 80. Zona Sul de Beagá.

Um artista plástico na flor dos 20 e poucos anos e, segundo alguns, muito à frente nem tanto de seu tempo, mas certamente de sua cidade – por seus méritos, cultura, conceitos e a estética de seus trabalhos, claro, mas também em razão do tradicionalismo e do provincianismo de boa parte de seus contemporâneos. Exilado em Minas, filho único, mora com a mãe, vive sem grana e não desiste nunca!

O cara tem obsessão, entre outras coisas, por cinema expressionista alemão, futurismo russo, spleen e rock depressivo, elementos que povoam seus quadros, inspirados em filmes, poemas, discos, livros. Em música, também curte uma coisa ou outra de rock clássico e, no caso dos compositores eruditos, prefere os muito diferentes: Erik Satie, Schoenberg, Boulez.

Está quase o tempo todo de preto, roupas e tênis surrados, e vai a pé de um bar a outro, não importa a distância, com uma pastinha de rascunhos debaixo do braço. É visto mais à noite do que de dia e a figura dele, vagando pela Contorno em direção ao Santa Efigênia, nas madrugadas, ao voltar pra casa, costuma espantar pro outro lado da avenida mocinhas que porventura caminhem em sentido contrário – sobretudo as que leram alguma coisa de Edgar Allan Poe ou assistiram ao Nosferatu, de Murnau.

Exageros à parte, ele capricha no topete caído sobre o rosto – embora um pouco mais esfarrapado, lembra um integrante de uma daquelas bandas de new rock de Manchester – e está sempre com alguma grande questão existencial em mente e no coração.

Pra época, poderia ser um perfil até comum, sem muito apelo... literário; não se tratasse do graaaaaaaande...

Deixemos de lado o nome do razaz.

Basta dizer que era (e ainda é) uma peça raríssima, um sujeito genial e muito querido que, falo sem medo de errar, entrou pra história daquela década e pra história de pessoas que a viveram, nessa roça que é a capital dos mineiros.

Fomos muito amigos. Tomamos centenas de cervejas e dividimos alegrias e aflições. Éramos, basicamente, assim como um monte de companheiros, uns escrotos: conseguíamos extrair motivos pra gargalhar e tirar sarro de quase tudo. O que, no caso, jamais carecia de esforços hercúleos, já que o artista vivia se envolvendo em situações hilariantes.

Conto aqui uma delas, mas garanto que há um sem-número de passagens desse naipe que precisariam de um editor zen pra que coubessem, digamos, em todos os livros e volumes da Bíblia, publicados desde o coquetel de lançamento.

Era um dia de semana ensolarado, circa 1986, quando o artista bateu à minha porta. As visitas dele eram comuns, principalmente depois do almoço: ficávamos a tarde toda escutando discos bacanas – íamos de Led Zeppelin a Escorbuto Atômico, passando por Liszt e Joy Division – e falando merda até dar a hora de ir pra noite, como vampiros que deixam o túmulo pra fazer a ceia.

Naquele tarde, porém, o artista estava diferente: inquieto, quase histérico, desesperado.

“Você viu minha namorada?”, ele me perguntou, os lábios secos de tanta ansiedade.

A garota era uma conhecida comum, de bem antes da nossa amizade, e os dois pareciam caminhar pro altar, apaixonados. Na noite anterior, pelo que me contou, haviam discutido e ela, numa crise de ciúmes, deixara o bar em que estavam puta da vida, sem dizer pra onde iria. Ele também foi embora e, pela manhã, ao procurá-la, ficou sabendo que ela não aparecera em casa.

“Tenho medo. Ela pode ter feito alguma besteira”, ele me falou, com a voz embargada.

“Calma, meu velho, entra aqui e vamos conversar”, eu disse, imaginando o abacaxi que tínhamos que descascar.

Esqueci de mencionar: o artista era um neurótico woodyalleniano. Hipocondríaco, excessivamente temoroso da morte – só os idiotas não o são, diria Woody –, filosoficamente dividido entre algo como um niilismo radical e um epicurismo pueril e, da boca pra fora, ateu – do tipo que, em momentos de angústia, não dispensa uma Ave Mariazinha silenciosa.

Conversa vai, conversa vem, nada de conseguir fazê-lo se acalmar. Telefonamos pra um bocado de gente em busca de informações sobre o paradeiro da namorada. E necas.

Percebendo que o cara estava a ponto de ter uma síncope, sugeri que tomasse um calmante. Eu não tinha nada parecido com isso em casa e resolvi pegar, escondido, uma aspirina no armário do banheiro.

“Engole essa pílula aqui que você vai se sentir melhor. Esse medicamento é a última novidade do mercado em tranquilizantes”, garanti.

Ele não pensou duas vezes: mandou o remédio goela abaixo, sem água.

O telefone, finalmente, tocou: era alguém dando o retorno de uma das ligações e a notícia era boa. As circunstâncias do breve “desaparecimento” da namorada não cabem aqui – a história é até sem graça –, mas o fato é que ela já estava em casa, sóbria e salva.

O artista me olhou com o semblante de um iogue e observou que o remedinho era muito bom! Ele se dizia em paz com o mundo e consigo mesmo, sentimento que se amplificava por saber que a amada estava viva e segura.

Foi então que cometi um erro terrível, fazendo um comentário totalmente desnecessário que tinha como objetivo apenas destacar minha participação determinante no episódio:

“Pois é, a substância ativa desse medicamento que arrumei pra você, não sei se sabe, faz com que a pressão sanguínea abaixe e deixa a pessoa nesse estado. Graças a mim, tudo ficou mais fácil, né?”

O rosto dele se transfigurou.

“Abaixa a pressão? Você ficou louco? Puta que o pariu, eu já sofro de pressão baixa! É por isso que estou com esse frio todo. Vou morrer! A culpa é sua!”, ele berrou.

Estendido na cama, o artista tremia, suava frio e repetia como um mantra “me fodi, Deus, me fodi, Deus, me fodi, Deus”. Pra que ele pudesse voltar ao normal, gastei umas duas horas: precisei fazer com que bebesse uns três litros de água com açúcar e jurar “pela morte da minha mãe”, umas mil vezes, que o que ele tomara fora uma inocente aspirina – na verdade, um pó ácido extraído da casca do Salgueiro, desde a Grécia Antiga, que tinha poderoso efeito antitérmico e analgésico e não poderia fazer tão mal.

Recomposto, e na saída rumo ao reencontro com a namorada, ele implorou que eu jamais mencionasse aquele mico a alguém.

Ops.

domingo, 31 de outubro de 2010

Red dots

Por Evaldo Magalhães


Um joguinho de futebol logo pela manhã na modesta e apertada garagem do prédio de três andares da Rua Pernambuco, no ainda pacato bairro da Savassi, depois de mais uma noite em claro que quase escurecera totalmente de tanta vodca, não parecia boa ideia. Principalmente porque o fato mais notável da noitada havia sido uma discussão com policiais militares muito filhos da puta, que quase resultara em pancadaria e prisão.

O entrevero se deu na tumultuada entrada de uma das muitas festas da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, a apenas quatro blocos dali.

O pátio sempre colorido da faculdade, no qual se viam nas paredes pinturas e pichações horrendas de artistas modernosos, permitidas pela direção da escola, era palco constante de eventos mal organizados e cheios de estudantes ensandecidos. Sempre também ao som de bandas da mais abjeta música mineira, do mais tosco heavy metal, da mais calhorda new wave ou do mais escatológico punk rock. Além, é claro, de tonéis de álcool e toneladas de maconha e cocaína servindo de combustível pra moçada.

Um soldadinho bem escroto, integrante da guarnição convocada pela vizinhança irritada com a balbúrdia costumeira, não queria deixar Dudu entrar, alegando que o local estava cheio demais e que, de qualquer maneira, a farra seria interrompida logo em nome do bem-estar das famílias do entorno. Bêbado, Dudu mandou-o se foder.

“Vá se foder, meganha de merda!”, ele e a vodca berraram.

Imediatamente, um bando de cachorros fardados o cercou, latindo gordas ameaças, chamando-o de “filhinho de papai”, de “seu bosta” e de “seu escroto”, e ele teve de correr pra não apanhar. Os policiais ficaram rindo.

Dudu chegou arfando ao prédio onde morava, o edifício antigo de classe média, e desabou na soleira da portaria. Ficou observando os passarinhos saltitantes nas árvores da rua, gorjeando idiotamente aos primeiros raios do sol, e uma tristeza imensa pesou-lhe no peito e nas pálpebras. Desmaiou por alguns minutos até ser despertado por gritos animados como os pios dos passarinhos, vindos de meninos na garagem do edifício, e pelo barulho de boladas na parede chapiscada da rampa de entrada. Ele levantou e correu até lá.

Entre amigos – muitos deles quatro ou cinco anos mais novos e ainda não iniciados na vida noturna –, deu de ombros pra miséria espiritual que o engolira e pediu pra entrar na pelada, também a despeito do sapato de bico fino e da camisa de seda preta, tipo aquelas do Morrissey, que se recusou a tirar. O resultado foi que a ressaca colossal, toda a chateação com a lama vivida pouco antes com os canas e uma série de outros fatores de ordem psicossomática – conforme os médicos lhe explicariam – fizeram com que Dudu passasse, aos 17 anos, por uma crise inédita e crucial na (de) formação de sua personalidade.

Bastaram alguns minutos de corrida leve e de chutes sem muita direção na bola murcha, em um modorrento começo de dia em março de 1985, pra que ele começasse a se sentir mal. Mal pra caralho!

Erupções vermelhas e disformes surgiram no corpo – primeiro nos braços, depois no peito e no rosto. O suor excessivo, a hiperventilação, a incontrolável coceira, a tontura e a sensação de um bolo de farinha entalado na garganta ajudaram a piorar as coisas.

“Que é isso? Cê tá todo empolado!”, comentou Nando, um carinha boa praça, de 15 anos ou menos, morador do 201 e um dos craques do futebol de garagem.

Pânico. Coração acelerado.

Ele nem disse até logo. Subiu correndo as escadas do prédio até o apartamento onde morava, no terceiro andar, buscando refúgio, ajuda, ambos.

“Mãe, eu ‘tô’ morrendo”, ele disse, exasperado, à dona Vera, que lia o jornal, como sempre, sentadinha à mesa da copa.

Deixou-se cair como um saco de bosta no sofá, de frente pra TV, com a mão no pescoço, sufocado, mirando na tela o patético reflexo.

“Está parecendo algum tipo de alergia. Você comeu alguma coisa diferente?”

Não havia comido nada desde a tarde anterior. O último lanchinho havia sido um pão dormido com manteiga e café frio, antes de sair com alguns amigos pra mais uma aventura errática pelo chamado “Baixo Belô” – conjunto de dez ou 12 quarteirões coalhados de bares descoladinhos. Saíra, pra variar, como um caçador descontrolado em busca de algo ou de alguém que, como ele definia em pífias incursões bêbadas e baudelaireanas, pudesse dar sentido ao seu “microinferno repleto de flores do mal”.

“Eu... não... consigo... respirar”, respondeu à mãe, sentindo-se derreter num caldeirão de adrenalina.

Apavorada também, Dona Vera acordou Thaís, a irmã dele e médica da casa.

Ainda sonolenta, recuperando-se de um plantão no Pronto-Socorro, ela sugeriu que Dudu fosse à farmácia correndo e tomasse uma injeção.

“É alergia, sim. Pode dar um edema de glote, fechamento da garganta. Precisa de remédio”, disse ela, examinando o irmãozinho de perto.

Ele sentiu espasmos violentos na barriga. Soltou uns puns altos e fedorentos de medo e experimentou ondas de suor ainda maiores que as de quando estava perseguindo descoordenadamente a bola murcha na garagem, acompanhadas agora de calafrios.

Uma sensação de perda total de controle o arrebatou.

“Minha garganta vai fechar?”, gritou.


Sem perspectivas ou respostas, sem contar com a razão ou com pensamentos bacanas que pudessem abrir uma janela pro sol iluminar-lhe as ideias, Dudu, até então excessivamente seguro em sua morbidez ensaiada – um charme nonchalance de jovem metido a pós-moderno dos anos 1980 –, saiu como um bólido de pavor pela porta da rua.

De uma espécie de Lord Byron charmoso e de alma obscura, mas pensamentos rasos, ou de um Sartre dado a rompantes de existencialismo de almanaque e raciocínio turvo como o espelho de um pântano, a despeito do esforço em parecer nobre e filosófico todo o tempo, havia se transformado em uma criancinha mimada e histérica.

“Isso é a náusea?”, ele se perguntava.

Sentia-se um arremedo empobrecido de Maiakóvski, um dos muitos ídolos literários – transtornado, tornado, louco pelo desespero, sim, mas não pela dramática impossibilidade de um amor genuíno, proibido pela sincera amizade com o companheiro da musa Lílitchka, ou pela decepção com os rumos inauditos e frustrantes de uma revolução que tinha tudo pra ser do caralho. Ele perdera o prumo por um terror insano, incontrolável, desconhecido e repentino de morrer, só isso.

E não havia devaneios inspiradores sobre um utópico e definitivo balaço na cabeça que pudessem reduzir o desconforto. Ele sabia que jamais teria coragem pra isso.

O que sobrava, naquele turbilhão súbito e inexplicável de emoções, era a profundidade mental de um animalzinho acuado pela besta-fera da inexorabilidade.

“Eu vou morrer, vou morrer agora! Eu sei que vou!”, pensava, enquanto sentia-se flutuar como um anjo caído por sobre as calçadas da Savassi.

Transpassado por ondas cada vez mais violentas de destempero, seus pensamentos se misturavam e revolviam como escombros em um ciclone, impregnados do odor de flores pestilentas, e de peidos de pavor. Contorcia o rosto, incomodado também pelo cheiro agora pútrido das quaresmeiras de Beagá, por sua própria ignomínia refletida nos olhares opacos dos passantes, e tinha a boca seca. Não conseguia engolir nada, nem ar.

Dudu se via na iminência de um desmaio de verdade que, pra sorte dele, não aconteceu.

“Eu preciso de uma namorada... Preciso achar uma coisa pra fazer que me dê prazer, que me deixe feliz... Eu preciso... de um médico”.

De volta ao lar, sem saber com que forças e com que senso de direção havia conseguido fazer isso, correu pro quarto e deitou-se sem nem tirar os sapatos. Cobriu o corpo até o queixo, tremendo.

Dona Vera nem quis saber por onde ele havia andado. Encontrou uma caixa de polaramine esquecida na minifarmácia do banheiro e levou um comprimido ao filho, que o engoliu entre soluços.

“Mãe, eu vou morrer, não vou?”

Angelical e acolhedora, ela disse que não, que se mantivesse calmo, que tudo ficaria bem, que o tal edema de glote, caso houvesse um, de fato, cederia; que o sol, enfim, voltaria a brilhar. Dona Vera falava coisas assim e dava tapinhas nas costas dele, do mesmo jeito que fazia quando ele tinha seis anos e se queixava de medo do escuro.

“Tá”, respondeu, sem muita convicção, mas suspeitando de que a viagem ao inferno, ou pelo menos aquele capítulo dantesco da sua vida, poderia estar chegando ao fim.

Até que o sono o abraçou, mais pelo efeito do medicamento que pelo reconfortante e leve ritmo das batidas de mão de dona Vera.

***

Na manhã seguinte, depois de quase um dia inteiro de sono pesado, acreditando-se refeito da urticária misteriosa e da sensação de pânico que o levara à beira da loucura, Dudu foi a um médico indicado pela irmã.

Teve prioridade no abarrotado consultório do tal doutor, uma sumidade em clínica geral e um ébrio inveterado que, segundo fofocas da turma de Thaís, das quais ele tomava conhecimento pela própria irmã na mesa de almoço dos domingos, havia perdido qualquer rascunho de prazer pela vida de tanto lidar com o que chamava de “um aniquilante sentimento de finitude”. Tudo por ter trabalhado, por duas décadas, em unidades de tratamento intensivo precárias nas quais o que fugia à regra era a sobrevivência dos doentes.

Como atributos adicionais, o sujeito possuía um diploma de especialista em reações alérgicas e, mais importante, era um dos ex-tutores de Thaís, no recém-concluído curso de medicina.

As grandes olheiras sob os olhos cinzentos e apagados e os sulcos que cortavam o rosto do médico, formando profundos e assustadores feixes de rugas, embora ele não tivesse ainda 50 anos, quase chamaram mais a atenção do paciente-impaciente que a explicação que ele lhe deu, após uma breve anamnese e um exame clínico apressado.

“Meu jovem, o que você teve é o que chamamos de urticária colinérgica”, sentenciou.

“E eu vou morrer?”, perguntou Dudu, apertando a mesma tecla do dia anterior, mas com os batimentos cardíacos mais acelerados que a bateria de um punkcore californiano por jamais ter ouvido a palavra colinérgica na vida – e porque ela, aparentemente, dizia respeito a algo muito, muito grave.

“Não, não”, ele riu. “O que aconteceu é que seu organismo reagiu de forma um tanto incomum ao estresse emocional e físico e à grande ansiedade pela qual você certamente está passando”, acrescentou, soltando a fumaça do cigarro de piteira pelas narinas peludas.

O doutor prosseguiu:

“Com o esforço feito no exercício matinal, os edemas cutâneos apareceram e, provavelmente, você de fato correu o risco de ter um inchaço interno na garganta. Mas isso tudo passou, não passou? Isso tudo passa”, disse, com um rasgo do gato de Alice no país das maravilhas nos lábios – um sorriso forçado com o qual desejava soar otimista, mas que o deixava ainda mais temível.

“Afinal, você é novo e cheio de vida! E tem um futuro bacana pela frente! Mas, olha, enquanto essa coisa estiver aí, procure não se banhar com água muito fria ou exagerar nos exercícios, porque a urticária pode voltar. Fique tranquilo e tome esse remedinho aqui, de oito em oito horas. E mande um grande abraço à sua irmã”, concluiu o médico, entregando a Dudu o papel da receita.

Pelo que ele entendera, em sua ainda inconsistente forma de ver a “coisa”, não poderia nunca mais entrar em piscinas sem aquecimento, nadar no mar do Rio de Janeiro ou tomar banhos nas cachoeiras da Serra do Cipó. Também não poderia jogar bola ou fazer qualquer tipo de atividade física até o fim dos seus dias, sob pena de experimentar, no coração daquelas trevas inéditas e indesejáveis que o cobriam, o horror, o horror do dia anterior.

“Ok, ok... Minha vida vai oficialmente virar uma grande merda”, resumiu pra si, mentalmente, pouco antes de pegar o ônibus, em frente ao consultório, enquanto observava os braços em busca das tenebrosas manchas vermelhas.

sábado, 30 de outubro de 2010

Câmbio Negro, desligo

Por Evaldo Magalhães


Não, não havia Internet nos anos 80.

Essa história de fazer sem maiores dificuldades os tais downloads gratuitos de músicas e Cds de bandas ou artistas festejados ou obscuros, por exemplo – sem depender da boa vontade de pessoas com os devidos canais de importação e pagar uma fortuna pra receber os discos –, era pura ficção científica.

E pra quem, como eu, era apaixonado por rock “alternativo”, principalmente, a Câmbio Negro, loja do monstruoso Marcelo e do sinistro Claude – um templo ao rock'n'roll erguido no terceiro andar da mal frequentada Galeria Praça 7, na Rio de Janeiro quase esquina com Afonso Pena –, era uma espécie de Google físico daquela época, em Beagá.

A diferença é que o serviço não apenas era pago, como podia sair caro pra caralho!

Há menos de dez anos, Marcelo e Claude me contaram, e juraram de pés juntos, durante show um tanto melancólico que marcou o reencontro no palco do pessoal do Último Número (banda da qual Claude era o baterista), que foram eles os grandes inspiradores de Nick Hornby pra criar o livro Alta Fidelidade. Aquele livro delicioso e que virou filme, em que Rob Fleming, alterego do escritor, é dono de uma loja de discos e resolve passar a limpo todos os seus casos amorosos.

Disseram que o inglês esteve em Minas Gerais, nos 80s, se não me falha a memória, e que ficou encantado com a Câmbio Negro e a fauna que circulava por lá.

Não levei a história muito a sério, mas teria sido na loja de Marcelo e Claude que ele aprendeu, entre outras coisas, como funcionava a arte de lucrar um bom dinheiro com a exploração desavergonhada da boa fé e da desenfreada paixão de roqueiros nerds por seus ídolos, o que é mostrado no livro. Um dos expedientes assimilados por Hornby a partir de conversas com a dupla seria o de fazer, por meio de muita enrolação e conversa fiada, com que discos não tão difíceis de encontrar fossem tidos como cálices sagrados da indústria fonográfica.

Com esse e outros catches, que demandavam do vendedor certa dose de vigarice, justificava-se o alto preço cobrado de jovens espinhentos pra que pudessem saborear orgasmicamente e ostentar metidamente por aí algumas suculentas bolachas de vinil.

Mesmo sendo um nerd espinhento que ainda não tinha lido Alta Fidelidade – mesmo porque o livro ainda não havia sido escrito –, eu sacava, ou pensava que sacava, muito bem esse golpe!

Sempre tranquilões, “como se” tivessem acabado de fumar um baseado, mas distantes e frios com boa parte dos clientes – comportamento justificável, já que tinha muito nego mala que passava o dia inteiro na Câmbio Negro! –, os caras pareciam baixar a guarda, como que por um passe de mágica, quando a gente demonstrava ter um conhecimento decente de rock'n'roll. Ficavam “amiguinhos” do freguês, sim, mas isso era só uma parte do plano. Confiança mútua estabelecida, colocavam os esquemas em prática. Com aqueles dois ludibriadores, toda cuidado do mundo era pouco!

Pois bem.

Certa vez ganhei de uma colega de colégio dois discos relativamente raros que haviam sido deixados como herança, só que sem herdeiros interessados, pelo pai dela, recém-falecido: o Cricklewood Green (1970), do Ten Years After, e o In-a-gadda-da-vida (1968), do Iron Butterfly. O presente me foi dado de bobeira mesmo, durante uma festa na casa dessa menina. Vi os discos e disse “Puxa, que sensacional! São raríssmos!”. Ela sorriu e me mandou levá-los pra casa.

Como, na ocasião, eu estava um pouco cansado daquele tipo de rock, que eu e meu irmão mais velho (que eu) vivíamos escutando em discos próprios ou em fitas Basf amarelas, gravadas de amigos, resolvi botar os dois vinis debaixo do braço e ir à Câmbio Negro, pra tentar umas trocas.

Embora fiel a grupos fundamentais na minha formação como Led Zeppelin e Genesis, com os quais tive a cabeça feita ainda menino, graças ao tal irmão, queria muito escutar e adquirir sons novos – muitos dos quais apenas ouvira falar, pescando conversas de uns poucos amigos iniciados na nova ordem do rock pós-Sex Pistols, se é que me entendem...

Coisas revolucionárias e mesmo esdrúxulas como Devo, Elvis Costello, Adam and the ants, Gary Numan, um monte de gente do recente pós-punk, estrangeiro e brasileiro, e até do idolatrado David Bowie, que, pelo que me contavam, deixara havia muito de ser aquele extraterrestre andrógino do anos 70 e assumira mil faces, desde então.

Cheguei à Câmbio com os discos dentro de uma sacola de supermercado, bem mocados, e pedi ao Marcelo, praticamente cochichando, pra ele dar uma olhada no “material”. Parecia que eu trazia amostras da melhor safra de haxixe marroquino de todos os tempos, tamanho o sigilo que quis empregar ao momento.

“Você quer vender ou trocar?”, ele perguntou, monocórdico, depois de dar uma espiada nas capas.

“Trocar”, anunciei, animado.

“Pode procurar alguma coisa aí. Dependendo do que você quiser, dá jogo”, ele disse, já colocando os dois discos debaixo do balcão – o que me preocupou.

Estralei os dedos e comecei a vasculhar as caixas da loja. Separei um Clash, uns dois Ramones, uns três Bowies e pensei, sinceramente, que ainda cabiam mais discos na cesta do escambo. No balcão, Marcelo cutucou Claude e ambos começaram a rir de mim.

“Que foi?”, eu quis saber.

“Nada, não, bicho. Mas isso aí que você tá pegando vai custar muito mais que essas duas velharias que trouxe”, Marcelo respondeu, com aqueles olhos apertados e o sorriso de Mônica-depois-de-espancar-o-Cebolinha que ele tinha (e ainda deve ter).

“Pô, sério?”, eu disse, decepcionado.

“Muito sério”, ele retrucou.

Depois, foi o Claude quem me explicou, sem me olhar nos olhos, como sempre fazia, que os discos que eu levara não tinham “muita saída”, já que a maioria do público da loja estava sempre atrás de novidades. Situação oposta à dos que eu gostaria de pegar, considerados joias raras no mix da Câmbio Negro.

Pode parecer brincadeira, mas, pelos dois que deixei, saí de lá com um único LP, usado e bem arranhado, de uma banda cujo nome não guardei e que ouvi inteiro uma única vez, dada a ruindade das músicas, pra depois lançá-lo nas teias do esquecimento – nem sei aonde o disco foi parar.

Passados alguns dias, voltei à Câmbio pra procurar alguma coisa bacana. Tive uma daquelas inconfundíveis e desagradáveis sensações, ou melhor, certezas de ter sido passado pra trás: o disco do Ten Years After, que encontrei em lugar de destaque no mostruário, custava pelo menos o equivalente a uns três Clash, uns quatro Ramones e uns cinco Bowies, vendidos juntos.

Não me restou muito a fazer: fui ao balcão e estendi a mão ao Marcelo e depois ao Claude, para cumprimentá-los.

“Vocês vendem discos de um monte de feras, mas são os verdadeiros artistas desse negócio. Parabéns!”, eu disse, sem esconder uma sincera admiração pelos larápios.

Meses depois, vim a conhecer o hoje finado Alexandre, dono de uma lojinha de aparelhos de som usados, na Savassi, e também mercador de discos raros das novas safras do rock alternativo – aliás, um sujeito que era amicíssimo do Marcelo e do Claude. Com ele, vi que meus conhecimentos sobre táticas 171 de vendedores de coisas que a gente gosta estavam bem obsoletos.

Mas isso é assunto pra outro texto.

Festas no Rodrigo: Lâmia, Lâmia, Lâmia

Por Evaldo Magalhães


A luz do sol ricocheteava em nimbus volumosos, misturados como algodões doces no horizonte, e enchia o céu de um vermelho sanguíneo naquele fim de tarde, em Moeda, pertinho de Beagá. Era julho de 1982 e Patrícia, então com 16 anos, estava prestes a experimentar, pela primeira vez, a famosa infusão de cogumelos alucinógenos preparada pelo Marcinho, colega de colégio.

Ele e Rodrigo, que, assim que criassem uma banda chamada Amanita Musicaria, no ano seguinte, convidariam Pat pra ser vocalista, buscavam entrar em contato com entidades místicas cultuadas em tempos ancestrais. Não entendiam direito com o que estavam lidando, só sabiam tratar-se de demônios que habitavam a imaginação de povos antigos e eram conhecidos e temidos por comer gente e beber seus humores.

Era uma brincadeira levada a sério.

E que se tornaria muito mais séria que qualquer brincadeira.


Em um descampado íngreme, postados próximos à fogueira e sob o céu agora quase na cor de sangue coagulado do entardecer, começaram a entoar velhas cantigas húngaras – em um desastroso arremedo da língua original das canções –, que haviam aprendido em uma edição especial da Revista Planeta, comprada em um sebo do Edifício Maleta, dias antes, por Rodrigo.

O chá que circulava entre eles em um copo de plástico verde desbotado fazia um efeito violento e Pat dançava alucinadamente. Ela começou a berrar e a se despir, alheia ao vento noturno gelado que já cortava os flancos da Serra da Moeda, e a fazer movimentos bastante sensuais, embora um pouco atrapalhados, com as mãos, as pernas e a barriga.

Rodrigo e Marcinho a acompanharam, mas com gestos mais masculinos, como se disputassem um campeonato de fisiculturistas: arquejavam e tensionavam os braços, aproximando-os com os punhos cerrados na altura do umbigo, provocando inchaço nas veias do pescoço. Eles brandiam sons guturais e babavam como bestas famintas.

Em êxtase, o trio não parou de se mexer nem quando a fumaça vinda da fogueira de galhos e folhas secas ganhou volume e, conforme Patricia me contou, adquiriu um tom azulado; nem mesmo quando dezenas de vozes, que pareciam ressonar em uma caverna de acústica impecável no fundo do inferno – ela disse – vieram com o vento e abafaram seus gritinhos pseudoxamânicos.

Lâmia, Lâmia, Lâmia.

E a deusa atendeu ao chamamento.

Com o torso atlético, cabelos esvoaçantes, rosto malévolo e um fulgurante corpo de serpente, ela surgiu majestosa, como um gigantesco espectro holográfico por entre a fumaça, pousando as mãos esquálidas, frias e descomunais sobre as cabeças de Rodrigo e Marcinho. O efeito dos fungos alucinógenos fez com que achassem aquilo tão natural quanto ser acariciado por um gênio psicodélico que acaba de vazar de uma lâmpada mágica. Eles sorriram.

“Putz!”, disse Rodrigo.

“Gostosa!”, emendou Marcinho.

“Ela está aqui, gente?”, perguntou Pat, com olhos perdidos, já que não via nada especial, só uma espessa névoa azul.

Lâmia teria a olhado com carinho, parecendo se compadecer da pobre mortal que não podia enxergar toda a sua beleza, o que era um privilégio de homens. Com as mãos ainda postas sobre as cabeças dos dois rapazes, que haviam se calado e assumido um ar mais solene – apesar das línguas pra fora e dos olhares esgazeados, como dois cérberos de temperamento dócil –, passou-lhes as instruções. A comunicação, em húngaro arcaico, mas também em forma de ondas mentais, teria levado poucos segundos.

Em seguida, uma forte ventania levou a fumaça e a deusa pra dentro da fogueira, que se apagou, abafando, num sopro surdo, o som do coro infernal.

Os dois rapazes desmaiaram. Patrícia sentiu um forte mal-estar e caiu de joelhos, chorando.

“Aí eu apaguei também e quando acordamos no meio do mato, no dia seguinte, Rô e Marcinho me disseram que eu deveria me guardar. Não transar com ninguém, sabe?”, disse-me ela, dias depois, durante uma das festas de arromba na casa do Rodrigo, no bairro São Pedro.

“Como assim?”, eu indaguei, saindo de um estado quase hipnótico, depois da história fantástica que havia me contado.

“Tipo... essa deusa, Lâmia, ordenou que eu preserve minha virgindade, que me mantenha pura até que apareça um cara bonitão e meio problemático. E disse ainda que esse cara será o primeiro e único homem que terei e que, dessa forma, nós dois nos tornaremos veículo de uma grande revolução mundial”, ela completou, entusiasmada.

Nesse momento, Rodrigo colocou pra tocar o Exit... Stage Left, do Rush, e alguém gritou que o vinho havia acabado. O disco, que Rô iria rodar pelo menos cinco vezes, sem parar, e o fim da bebida eram a senha pra me despedir e descer a pé do alto do São Pedro até a Savassi.

Muita gente fazia o mesmo e sempre pegávamos o caminho pra casa em grupos. Rodrigo acabava sozinho na mansão, pela qual parecia ter passado um tufão, e, acredito, curtia ressaca no resto do final de semana, sem mover uma palha pra arrumar a bagunça. Na segunda-feira, quando os pais dele voltavam do sítio, provavelmente tomava um esporro daqueles, mas nunca mencionou isso pra nós, no colégio.

Quando pegamos a Major Lopes, pra depois descer a Lavras e chegar à Contorno, perguntei ao Marcinho sobre a história contada pela Pat. Era verdade?

“Que nada, velho. Ela ficou foi muito doida”, ele disse, seguindo a observação de uma risada que, muitos anos depois, eu acharia muito parecida com a do Beavis, da MTV.

Pelo que fiquei sabendo, mais recentemente, Patrícia, que nunca vi ficar com alguém, acabou se casando com um namorado de faculdade. O sujeito, hoje, é um empresário muito bem-sucedido e tem planos de entrar para a política.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Urso faminto? WTF!!! (User discretion is advised)

Por Evaldo Magalhães



O Outro Lado do Arco-Íris (nome brilhantemente mudado aqui), perto da minha casa, na Savassi, era um barzinho de gente que parecia ter acabado de chegar de Woodstock. Com roupas típicas, mas repaginadas pros anos 80, essa turma dava a impressão de estar constantemente ansiosa – e todos fungavam muito, também – por compartilhar e reviver as experiências alucinógenas com quem não pudera ir ao festival.

Vestido de preto e certo de que isso me diferenciaria dos coloridos hippies tardios que circulavam pelo estabelecimento, cheguei lá por volta das 22h, como quase todas as noites, e cumprimentei o Zé, dono do boteco – cara estranho que parecia mais um abastado artesão, daqueles peruanos e bolivianos que enchiam o saco da gente com flautas de Pã, que um bem-sucedido empresário da noite.

Zé usava óculos iguais aos de John Lennon, coletes enjoativamente floridos, camisas de linho, calças largas aciganadas e sandálias de palha, compradas provavelmente em Jericoacoara ou outro paraíso nordestino qualquer. E cheirava a patchouli, eu juro.

Fui direto pro balcão.

- Vodca com gelo, por favor? – pedi a Geciley (nome também alterado, claro), a bartender um tanto histriônica, mas simpática, que, apesar de não muito bonita, fazia a alegria dos rapazes que frequentavam a casa.

- Cê anda sumido – ela disse, melosa, com um característico sotaque belorizontino.

Eu a fitei com um leve desdém, como sempre, procurando emitir sinais de que não estava a fim de papo. Queria beber minhas cinco ou seis vodcas e pronto.

Um dos inconvenientes do Outro Lado, devo dizer, além do clima exageradamente festivo, era a música. Sons chatérrimos do new rock nacional, como Blitz e Lulu Santos, dividiam a preferência do Zé, o DJ residente e absoluto, com músicas mesozóicas e engulhosas, extraídas de álbuns de grupos musicais totalmente desnecessários à história. Ponto.

Mas, naquela noite, eu nem me importava. Queria era me embriagar e esquecer por alguns momentos a tensão e o desconforto que havia passado horas antes, quando recebi a notícia de ter sido “aceito” para cumprir o serviço militar obrigatório no glorioso 12º Batalhão de Infantaria, no Barro Preto.

Na terceira dose de vodca, senti uma mão amistosa tocar meu ombro.

Imaginei que pertencia a um dos amigos da noite, com os quais não encontrava havia algum tempo: uns malucos avessos àquele bar, mas que sempre iam lá, depois de passar pelo Trincheira e pelo B, pra tentar descolar uma hippie balzaquiana qualquer que financiasse a empreitada a que se dedicavam com afinco: não trabalhar e cuspir no sistema.

Atrás de mim, porém, com a expressão de quem via um fantasma, estava Adriana (nome fictício, of course), dos tempos da 6ª Série no colégio de freis em que eu havia estudado.

- Cara, não acredito que é você - ela disse, conduzindo as palavras com os olhos amendoados dos quais era impossível esquecer.

- Puxa! - reagi, quase engasgado com a pedra de gelo que mastigava.

- Sabe, às vezes nem eu acredito. Só acredito que sou eu quando encontro uma pessoa tão importante. Como você!” - acrescentei, já sob efeito do álcool, com uma alegria desmedida e sem esconder a satisfação pela segunda intenção expressa – e certamente não captada por ela – em “como você”.

Conversamos por mais de uma hora. Lembramos casos de escola divertidos pra ambos, mas tão desagradáveis pra quem não os vivenciara que fizeram até com que Geciley, enxerida por natureza, nos deixasse em paz e fosse, sei lá, lavar uns copos.

Adriana falou da vez em que eu vasculhei a mochila dela, quando saiu da sala pra ir ao banheiro, à procura de um bombom que ela havia me prometido. Acabei encontrando maços de absorvente feminino. Um colega abriu os pacotes e iniciou uma guerra de modess entre os integrantes da chamada turma do fundão, só encerrada quando um dos papelotes acertou a careca do vetusto professor de português, que acabava de entrar na sala.

Também falamos do dia em que um outro colega, famoso na escola, brigou de porradas com o lendário Ku Soon, um filho de coreanos quieto que, quando provocado no recreio – foi chamado de Ku Sujo –, se mostrou mais habilidoso e mortífero que o Caine de Kung Fu. Saco de pancadas pra fúria do rapazinho de origem asiática, o tal colega ficou uma semana com o olho roxo e dores lancinantes nas costelas.

- Foram tantas coisas boas naquela época, né? - Adriana disse, de uma maneira incrivelmente doce e excitante.

- Foram, foram sim - respondi, dando a pausa necessária pra fazer um convite ousado:

- Vamos dar uma volta?

Adriana assentiu, com um quê de menina malvada. Pagamos a conta e saímos do bar.

Nosso destino foi o apartamento onde ela morava sozinha desde que os pais, um dentista aposentado e uma ex-professora, haviam se mudado pro sítio da família, perto de Beagá.

O apê, um dois quartos bem charmoso próximo à Rua Outono, no Sion, foi o palco de um ritual inesquecível naquela madrugada.

Já acomodados no sofá da sala, copos em mãos – eu bebia vodca com gelo e fanta laranja e ela, apenas o refrigerante –, ao som de Bad boy, cantada por Ringo Starr, na vitrola, Adriana fez uma revelação sensacional. A gente já havia se beijado e dado uns amassos no caminho de cerca de uns seis quarteirões entre o Outro Lado e a casa dela. Estávamos muito excitados, mas nos recompusemos por uns momentos pra ter aquela conversa.

- Eu sou virgem - ela disse, abaixando os olhos, tímida, buscando ar num suspiro profundo e voltando a me encarar - Gostaria muito que você fosse o primeiro homem da minha vida.

Bem em cima do verso da música segundo o qual a vida é uma taça de cerejas e o sujeito que canta vai livrar-se dos problemas e transformar a noite em dia, ou algo assim, eu exclamei, emocionado: “Oba!”

Adriana pediu licença e foi pro quarto, de onde prometeu sair em breve, vestindo “algo mais confortável” – como nos filmes americanos.

Com o ar de quem espera a vendedora da sapataria buscar um modelo diferente e no tamanho adequado pros pés 44 – aquele breve momento de reflexão sobre a vida, o universo e sabe-se lá o que mais –, relaxei no sofá, sorvendo o restinho da vodca com fanta.

Pensei no Exército e no que me aguardava e imaginei que tudo de ruim ficava menor diante do que eu estava prestes a viver. Entreguei-me então a um rápido devaneio sobre as milhares de coisas bacanas que poderiam me acontecer nos próximos minutos, horas, dias, anos, séculos.

Putz, eu estava feliz ali, viu?

Até que o tempo foi subitamente suspenso: Adriana entrou na sala como um anjinho pervertido. De microcamisola vermelha; a calcinha da mesma cor, à mostra; as pernas grossas, os seios grandes muito brancos, mostrando delicados feixes de veias, quase se libertando das meias-taças. E um sorriso ardente e ingênuo ao mesmo tempo.

- Uau! - eu balbuciei.

Nós nos enlaçamos e nos soltamos no sofá, trocando beijos tão bravos que até feriram meus lábios. Arranquei a microcamisola de Adriana, baixei as calças até os joelhos e levei o rosto dela à minha virilha. Ela gemeu de um jeito muito legal!

Pouco depois, trocamos de posição e mergulhei nos ralos cabelos castanhos e macios do baixo-ventre dela. Eu parecia um urso grandão e faminto, enfiando o focinho numa colmeia reluzente. Também achei graça nessa imagem, claro, mas não parei de fazer o que estava fazendo.

Percebi que jamais havia, literalmente, me lambuzado com uma mulher tão...

Ah, Adriana!

Estávamos lá, naquela espécie de dança ritmada pelo estalar repetitivo da agulha, estacionada no final do disco do Ringo, quando a porta da frente do apê se abriu. O pai dela falou grosso e não entendi completamente o que ele dizia, mas pude pescar uns palavrões. O que sei mesmo é que me vesti em velocidade warp e saí dali sem olhar pra trás, pensando o que diabos o ex-dentista viera fazer em Belo Horizonte, àquela hora.

Nunca mais nos vimos.

Mas ainda me lambuzo com essas lembranças. Quase com tanta alegria como a que sinto ao lembrar que, no dia seguinte, recebi a maravilhosa notícia de que o Exército cometera um erro quanto ao número de recrutas. Acabei dispensado por excesso de contingente.

Ninguém se atreve a ver além do olhar

Por Evaldo Magalhães



Com a calça de couro negro colada às pernas magras e a camisa branca de pirata empapada de suor, Gato Jair entoava os versos do último número do Último Número da noite, já no bis. Uma canção bacana, marcada pelo baixo e a guitarra até certo ponto alegres, o que contrastava com o clima geralmente sombrio das letras. O palco havia sido instalado na rua, bem em frente ao Complexo B, um dos bares mais frequentados por punks, darks e afins de Belo Horizonte, em determinado período dos anos 80.

Eu estava bastante bêbado, mas não a ponto de ficar imune ao desespero que emanava dos movimentos andróginos e cheios de pantomimas do poeta maluco com o microfone.

Gato Jair era o cara!

Empolgadíssimo, quase chorava, deliciando-me com a mistura entorpecente de sons. Conforme definição de um amigo, os acordes e as letras do Último Número eram pra fazer as pessoas inteligentes suspirarem – por inteligentes, talvez ele quisesse dizer depressivas – e, por outro lado, deixar bastante incomodados os pobres de espírito – no geral, ainda segundo ele, quem gostava “de pop e new wave”.

Hipnotizado pelo swing caótico da banda e pelos inimagináveis trejeitos gainsbourg-morrisey-morrisonianos do vocalista, em sua música derradeira, Tina (nome fake, claro) se aproximou de mim.

- Vamos fumar um baseado e depois seguimos pra festa. Você vem? – ela disse, com os lábios de batom negro grudados no lóbulo da minha orelha esquerda.

- Olha, estou aqui curtindo o som desses caras. Essa música é genial! E maconha é coisa de hippie – eu disse, espantando Tina.

A arte é longa, a vida é breve,
nessa aventura ninguém se atreve
a veeeeeeeeer aléééééém do olhaaaaaaaaaaaaaaaar

Entremeados pelo baixo saltitante, os versos ganhavam mais emoção ”sob os auspícios da guitarra sincopada, mas tonitruante” – pra usar palavras do Arthur, um dos críticos musicais mais certeiros e poéticos do mundo – do John Ulhôa.

Dez anos depois, nos anos 90, John faria sucesso em outra banda. Um som pop, de nítidas influências new wave e, embora esse ponto fosse controverso, até com uma certa brejeirice pop permeando as canções. Isso deixaria muitos ex-fãs furiosos, enquanto outros, mais novos, o aplaudiriam – e à mulher, Fernanda – como loucos.

Fato é que, naquela época, todos os outsiders e undergrounds de BH o amavam.

“Se Clapton é Deus, esse cara é o demônio!”, diziam.

Aplaudi ferozmente o Último Número após o acorde final, dando pulos pra olhar, sobre as cabeças da pequena multidão concentrada mais perto do palco, o que parecia ser um ataque epilético do Jair. Apesar da timidez na vida “real”, ao melhor estilo jimorrissoniano ele simulava uma convulsão, estrebuchava-se e rolava pelo chão.

Acompanhada de um pequeno bando de “urubus”, garotos e garotas apelidados assim pela maioria das pessoas por vestir-se sempre com casacos pretos, calçar coturnos desconfortáveis e usar pesadas maquiagens, Tina passou novamente por mim.

- Então, vamos nessa? – ela perguntou.

- Ocá - eu disse, conformado.


****


Do toca-fitas roadstar do Fiat 147 azul-calcinha do Marquinho (o carro e o nome não eram esses, mas que sejam), a voz aveludada de Ian Macculoch e a barulheira infernal de Will Seargent e Pete de Freitas, em Over the wall, esgoelavam pela quinta vez na noite, no caminho do bairro Belvedere, o reduto de mansões da Zona Sul. Eu era sufocado pela excitadíssima Tina no banco de trás, ao lado de dois irmãos que chamarei aqui de Mary Chain Bros., cujos rostos, tampados pelos topetes negros e crespos caídos sobre os narizes enormes, ninguém jamais conseguira ver com detida atenção.

No banco ao lado do de Marquinho, flutuava uma deusa ruiva que eu e praticamente todos os homens que já haviam pousado olhos nela, inclusive gays e um monte de mulheres, éramos a fim de comer. Ela cantarolava com inglês sofrível uma música diferente do Echo and the bunnymen. Todos estavam irritados com a falta de synch, mas ninguém a mandava calar a boca.

Tina estava mais preocupada em lamber a própria marca de batom na minha orelha. Eu, assim como os irmãos Mary Chain, alimentava esperanças de um dia, who knows, transar com aquele monumento ruivo e evitava comentários ofensivos. Marquinho, que sempre a comia e parecia enjoado disso, estava muito louco pra conseguir xingá-la.

- Ocê sabe o endereço da festa, né? – ele me perguntou, após reunir forças, virar-se para passar o baseado a um dos Mary Chain e sacar que teria de berrar pra se sobrepor à música e aos ganidos da ruiva.

- Ocê sabe o endereço? – ele repetiu, bem mais alto.

- Sei. A casa é bem atrás do shopping. Não tem erro. Cê segue essa estrada e em poucos minutos a gente chega – respondi.

Uma luz piscando no céu chamou minha atenção no momento em que olhava pela janela pra me desvencilhar das investidas de Tina na versão “‘tô’ no cio” – o alvo das lambidas agora era meu olho. Tratava-se de um ponto amarelo-avermelhado acima da Serra do Curral, que oscilava tanto em brilho quanto em posições: ziguezagueava, incomodando bastante quem já tivesse assistido, mesmo que com moderado ou quase nulo interesse, meu caso, aulas de física no colégio.

- Putz, olha só aquilo?! Parece um disco voador! – arrisquei.

- Nó, cara, deve ser sim... Um óvni da Varig – comentou um dos Mary Chain, sem sequer dar atenção ao objeto que, estranhamente, crescia no horizonte, como se estivesse se aproximando do carro.

A despeito do desdém do dark narigudo e topetudo e, de resto, de todos os outros ocupantes do Fiat 147, que pareciam não ligar pra luzes estranhas no céu – preferiam se ater a algo como o “grande e inelutável nada”, como costumavam dizer nas usuais sessões de conversa fiada –, continuei com os olhos fixos no objeto.

Alertei a turma três vezes pro fato de que o óvni se aproximava do automóvel, nos dois minutos seguintes. Mas todos insistiam em não dar pelota.

Pelo menos até que o carro reduzisse a velocidade e parasse de funcionar bruscamente, em uma estradinha deserta atrás do shopping. Estávamos a poucos metros da casa da festa, de onde se podia ouvir Charlotte sometimes, do The Cure, entrecortada por um burburinho de conversas fúteis.

- Uai... Ocês acreditam que a porra do carro morreu? – disse Marquinho, que virava a chave compulsivamente e pressionava o acelerador e a embreagem, sem sucesso.

Quando eu me preparava pra iniciar, de maneira triunfal, a frase na qual exporia a tese de que aquilo tinha a ver com a aproximação do estranho objeto visto no céu, uma luz forte e vermelha, quase da cor dos longos cabelos da ruivona, invadiu em flashes contínuos o interior do Fiat 147. Na festa, ninguém escutou, mas, no carro, gritamos de pavor.


****


A viatura da PM, conduzida pelo cabo Barone (vamos chamar o cara assim), companheiro de ronda do sargento Figueira (idem), estava à espreita, atrás de um outdoor, com os tripulantes loucos pra assustar jovens incautos com seus cigarros de maconha de passassem pela estradinha, atrás do shopping. A imagem do carrinho mequetrefe de Marquinho havia sido motivo de gritinhos efusivos dos policiais.

Enlevados e excitadíssimos, eles perseguiram o veículo azul-calcinha insidiosamente, apenas com as luzes da sirene ligadas, quase antevendo o afogamento do motor e a possibilidade de abordar e de dar um baita susto na garotada.

- Aê, vagabundos! Todo mundo pra fora do carro, mãos na cabeça! – disse o cabo Barone, feliz da vida, depois de realizar com certo histrionismo a manobra que fechou o ângulo de saída do Fiat estragado, no acostamento.

- E não tentem se livrar do bagulho. Hoje vai todo mundo em cana, ha, ha! – completou o sargento Figueira, exultante e saltando da viatura de arma em punho, sem saber que um dos Mary Chain já havia jogado o baseado fora.

Tentei argumentar, ainda de dentro do carro, que todos ali éramos trabalhadores, mas os policias não deram conversa. O cabo Barone me aplicou um safanão e me tirou à força do carro, logo depois que a ruiva e Marquinho haviam sido sacados com igual gentileza.

- Cara, você não pode me tratar assim! Tenho meus direitos – eu disse ao homem da Lei, que percebeu, de fato, boa deixa pra soltar uma das pérolas de policial malvado:

- Você tem é o direito de ficar calado, seu bosta! – gritou, emendando a frase com um tapa na minha cabeça.

Os canas fuçaram o carro todo. Cheiraram nossos dedos, soltaram mais frases de intimidação e riram do nosso desespero. Mas, como não encontraram evidências, por sorte, eles nos liberaram.

Eu, os Mary Chain e até Tina empurramos o Fiat pela estrada, pra pegar no tranco. Marquinho ficou ao volante e a ruiva, impassível ao seu lado. O motor voltou a funcionar e, antes de entrar e seguir pra festa, dei uma nova conferida no céu.

A luz que nos acompanhava havia sumido. Com ela, a esperança de que o mundo viesse a ser um lugar menos chato, um dia.

“Nessa aventura ninguém se atreve a ver além do olhar”, eu cantarolei, em falsete.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Pânico no velório

Por Evaldo Magalhães

(esta história me foi contada por um dos amigos mais loucos)





A Praça da Liberdade tinha um movimento atípico naquela manhã de quinta-feira, 23 de abril de 1985. Centenas de pessoas se aglomeravam no entorno das palmeiras imperiais. E não eram os habituais personagens das noitadas de Belô, gente serenamente alucinada que pousava nos bancos ou se aboletava no coreto da praça, até e além do raiar do sol, comendo sanduíches, tocando violão e bebendo os últimos goles de vinho e latinhas de cerveja depois de um périplo pelos botecos da região. Nem mesmo a turma que fazia exercícios físicos bem cedo, talvez pra purgar o corpo e a alma de pecados cometidos quando pertencia ao grupo anterior.

Eram senhoras e senhores respeitáveis, vestidos formalmente e de cabelos brancos ou pintados; meninas e meninos de cabelos longos ou curtos e olhos brilhantes e sóbrios; homens e mulheres com pinta de profissionais liberais, funcionários públicos ou empregados de grandes corporações que haviam estacionado perto dali seus carros do ano. Também havia muita gente simples, desempregados ou assalariados sem dinheiro pra ter carros; gente branca ou parda ou negra que pegava ônibus lotados pra trabalhar cedo em repartições, escolas, hospitais, corretoras de imóveis, lojas, construções.

E todos transbordavam tristeza – uns rezavam, outros choravam; alguns aproveitavam o movimento pra vender picolés, água e refrigerantes, mas sem transparecer alegria pelos trocados recebidos.

“Está muito agitado isso aqui, hem?”, Helvécio observou, com o braço direito apertando Andréa junto ao peito, confiante como há muito não se sentia. Os dois haviam acabado de acordar e saíram pra tomar o café da manhã, passando antes pela praça.

“Essas pessoas todas estão aqui pro velório do Tancredo Neves. O corpo vai chegar ao Palácio da Liberdade à tarde. Eu tinha me esquecido completamente desse detalhe”, ela disse.

“Ah, é, o presidente morto antes de ser empossado. Vi alguma coisa no jornal”, comentou Helvécio, que começava a se sentir estranho e registrava mentalmente um tipo de esquentamento cutâneo no braço, o mesmo que usara havia pouco pra abraçar a companheira.

Curiosa, Andréa agarrou a mão do novo namorado, puxou-o e os dois se embrenharam na multidão que se formava nas imediações do Palácio da Liberdade, onde o corpo de Tancredo seria velado. Acotovelando-se, dando e sofrendo empurrões, conseguiram se aproximar das grades da imponente sede do governo mineiro.

“Não acho boa ideia ficar no meio dessa gente toda, Andréa”, ele disse, suando mais que o normal e dando espiadas seguidas no braço quente, onde manchas vermelhas começavam a pipocar.

“Vamos embora daqui agora?”, acrescentou.

“Não seja medroso, gatinho”, ela respondeu.

A menção ao suposto medo que ele poderia estar sentindo foi como uma chave virada que desencadeou um estrondoso e complexo processo elétrico nos neurônios de Helvécio. Uma onda de adrenalina elevou-se da barriga ao peito e, impactado, o coração passou a bater em velocidade extraordinária. A camisa preta que ele vestia desde a noite anterior parecia ter se transformado em um escafandro apertado. As coceiras pelo corpo e a sensação de sufocamento, bem conhecidas, o dominaram.

Helvécio queria gritar, dar socos e pontapés a esmo pra se livrar do rato que lhe comia das entranhas à pele, mas não conseguiu fazer nada disso: ficou estático, em um torpor jamais experimentado.

“Gato, você está pálido. Tá tudo bem?”, Andréa perguntou, ao notar que o companheiro havia simplesmente estacionado no meio da avenida.

Na verdade, ele parecia realmente ter sido congelado, a não ser por umas caretas grotescas e repetitivas, como se estivesse tentando desentupir os ouvidos, e por uma dança louca das pupilas nas órbitas dos olhos, o que a fez pensar em algum tipo de possessão.

“Tem razão, é melhor a gente sair daqui. Vem, vamos pra Savassi. Vem”, Andréa disse, com relativa calma na voz, sacando que algo de muito esquisito ocorria com ele e puxando-o em direção ao canteiro central da Avenida Cristóvão Colombo.

O problema é que ele não se moveu. E não pronunciou palavras inteligíveis que pudessem dar a ela pistas das sensações que o invadiam. Começou a gemer, primeiro baixinho, e depois em tons mais elevados, até que vociferava como a vítima recente de um desastre, ainda sem que vogais e consoantes formassem combinações passíveis de compreensão.

“Slartbaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaalstraaaaaaaaaaafffffffffffffffffffeeeeeee eeee ee ee ee e eeeeeegggggggggggggggghhhhhhhhhhh”, ele gritou.

Uma senhora bem ao lado se assustou com ele e também deu um berro de pavor. Um homem próximo dela se amedrontou subitamente com os gritos de ambos e, por impulso, provavelmente imaginando que as manifestações haviam sido motivadas por algo muito ruim, tentou deixar de qualquer maneira o metro quadrado de asfalto que dividia com outras três ou quatro pessoas.

Naturalmente, como na vizinhança daquele metro quadrado os espaços livres de pessoas eram bastante escassos, houve uma reação em cadeia: primeiro dezenas e depois centenas de homens, mulheres e crianças, assustados com gritos e empurrões que se multiplicavam, começaram a se esforçar, ao mesmo tempo, pra sair de onde estavam.

O tumulto, acompanhado de atitudes defensivas das mais primitivas, como puxões de cabelo, dedadas nos olhos e pisoteamento, tomou conta da multidão. Também por puro instinto de sobrevivência, Helvécio saiu do transe que o pânico lhe provocara e aderiu à violência libertadora que contaminava a turba. Andréa fez o mesmo, mas, menor e com mais habilidade e tranquilidade que o desajeitado e truculento Helvécio, conseguiu se safar sem arranhões.

Em pouco tempo, os dois já reduziam a velocidade dos passos na descida da avenida em direção à Praça da Savassi, sentindo-se salvos da confusão.

“Cara, o que foi aquilo? Você viu o que você fez?”, Andréa perguntou, ofegante, sentando-se no muro de um dos canteiros da praça, na esquina da Avenida Getúlio Vargas. “Pode até ter morrido gente ali, Helvécio. E a culpa foi sua!”, ela completou.

“É, eu sei”, ele disse, limpando o sangue que corria do supercílio e um pouco surpreso por não acusar o menor vestígio de remorso.

Pelo contrário, sentia um inusitado prazer em ter iniciado, mesmo que supostamente, a bagunça, que culminou, ele soube mais tarde – também sem nenhum arrependimento e até com uma pontada de mórbida satisfação –, em um saldo trágico: sete mortos, esmagados contra as grades do Palácio da Liberdade, e dezenas de feridos.

Um descalabro que, segundo a TV, o rádio e os jornais, havia sido causado apenas pelo fato de milhares de pessoas terem se reunido de maneira desorganizada em um local inadequado. Todas bastante ansiosas pra se despedir de um presidente que poderia salvar o país e, ironicamente, vítima de uma doença arrebatadora, sequer chegou a ser empossado.

Helvécio entrou em casa minutos depois, com a camisa preta rasgada e uma nódoa de sangue coagulado na sobrancelha esquerda. A mãe dele, sentada à mesa do café, deslocou os olhos do jornal para o filho, em farrapos, e deu um salto da cadeira.

“Menino, você brigou na rua?”, ela disse.

“Briguei, mãe, mas foi comigo mesmo.”

Na Casa D'Irene

Por Evaldo Magalhães

No decorrer da vida, a gente tem muitos momentos, digamos, especiais, daqueles dos quais nunca se esquece: um beijo, um tapa, um sorriso, um choro, um medo, uma alegria, uma perda, um ganho. Não importa de que tipo, há sempre um pedaço de tempo e/ou espaço que fica guardado lá dentro e, vira e mexe, volta à tona com tudo, nos assombra ou nos deslumbra.


Nesse rol de agulhadas indeléveis n’alma, que traçam a animada ou modorrenta paisagem do quebra-cabeça (aparentemente, uma contradição, pois não?) que somos, não faltam prazeres gastronômicos. E um dos maiores, no meu caso, foi uma determinada torta de galinha, numa determinada noite fria de um determinado julho dos anos 1980. Comi-a quase de joelhos em uma mesinha de calçada, na esquina da Rio Grande do Norte com Getúlio Vargas. Claro, acompanhada de uma cerveja estúpida de tão gostosa.

Lembro disso como se fosse ontem – ou como se houvesse sido sempre, porque não me larga essa lembrança.

Deixei a namorada em casa e, bêbado, irresponsavelmente bêbado, irrespondivelmente bêbado, rumei na charmosa Brasília cor de cocô anêmico e com volante de madeira pra Savassi. Subindo a Bias Fortes de quarta marcha e no gás todo – o carro, que minha irmã não emprestava, mas eu roubava, tinha dupla carburação e, a despeito do barulho infernal, andava muito! – me veio, num estalo, a ideia de dar uma esticada na night. Estalo é só modo de dizer, porque eu sempre esticava as noitadas e não havia nada de original naquela embriagada epifania.

Só que no semáforo da esquina com a Praça da Liberdade, pensei – aí, sim, com ineditismo: “Que fome! Uma tortinha da Casa d’Irene cairia bem. Depois, sigo pra esbórnia: Complexo B, Trincheira, Outro Lado da Moeda, Incapazes do Nirvana, whatever”.

Seria a primeira vez que eu comeria de madrugada e não iria direto pra cama!

Mas esse raciocínio nem me ocorreu.

Bom, devo dizer que eu e Nico Fidenco sempre compartilhamos o amor por aquela casa. O garçom, o imortal Baiano, que servira anos antes meu irmão e, eu suspeitava, também meu pai, meu avô, meu bisa e até um dos botocudos dos quais descendo, recebeu-me, pra variar, com o riso frouxo.

Pelo que me lembro, Baiano gostava de todo mundo, só não o agradavam muito os maconheiros e os hippies. E gente assim era maioria entre a clientela, o que, imagino, deixava o cara ainda mais feliz ao me ver. Cantei pra ele: “A casa d'Irene si canta si ride/C'e gente che viene, c'e gente che va”.

Encabulado, o velho garçom meneou levemente a cabeça pros lados, deixando escapar alegria peculiar que só mesmo os baianos ou os italianos do Nordeste da Calábria devem demonstrar ao ouvir uma canção.

“Vai uma antártica geladinha?”, ele me perguntou, limpando o tampo da mesa com a mão espalmada, tirando restos de frango.

“Vai, sim. E uma tortinha!”, eu disse.

Olha, acho que a torta que ele trouxe tinha acabado de sair do forno. Mas não foi só isso.

Também acho que a cozinheira que trabalhou naquele dia estava especialmente enlevada com alguma coisa: uma notícia boa, um aumentozinho no salário, o nascimento de um sobrinho, um prêmio de loteria, a confirmação da correspondência de um amor. Mas também não foi só isso.

Talvez os frangos que involuntariamente cederam suas coxas, sobrecoxas, asas e peitos pra rechear o acepipe que degustei tivessem, pouco antes da degola, recebido alguma graça dos deuses dos frangos – assim, incrivelmente felizes, nem deram bola pra morte e sucumbiram com as entranhas banhadas em endorfina galinácea. Mas, sei lá, não foi isso.

Na primeira garfada, o que senti foi o de sempre. “É, a torta é boa. Combina com cerveja gelada”, pensei.

A partir da segunda, ah, comecei a revirar os olhos.

Dizer que minhas papilas gustativas eram expectadoras privilegiadas de um festival inigualável de sabores seria meio gay da minha parte. Completar com uma frase do tipo “eu saí de mim ali” seria ainda mais viado. Mas, poxa, deem um tempo! Foi isso mesmo!

Aquela pasta de pedaços generosos e deliciosamente macios de frango, envoltos em um molhinho suculento de tomate com cebola e sei lá mais o quê; a massa úmida, mas paradoxalmente podre (seca), trançada como obra de arte no entorno do recheio; a consistência do conjunto...

Não sou, e jamais fui, especialista em culinária. Mas os passes de mágica que minha mãezinha sempre deu na cozinha me garantiram, na pior das hipóteses, paladar dos mais apurados. Naquela noite fria, eu dizia, bebadamente, como que confirmando o momento especial que guardaria pro resto da vida: “Ô Baiano, minha mãe trabalha aqui agora?”

Depois do último montinho de torta empurrado pelo polegar até o garfo, levado à boca com requintes rituais e mastigado e engolido como se fora um ato de amor, pedi a conta, paguei e nem quis saber dos meus planos.

Fui pra casa, fiz a higiene de sempre, deitei-me e dormi como um anjo.

Mas não sonhei. Talvez porque, naquela noite, minha cota de sonhos estivesse esgotada.