Um joguinho de futebol logo pela manhã na modesta e apertada garagem do prédio de três andares da Rua Pernambuco, no ainda pacato bairro da Savassi, depois de mais uma noite em claro que quase escurecera totalmente de tanta vodca, não parecia boa ideia. Principalmente porque o fato mais notável da noitada havia sido uma discussão com policiais militares muito filhos da puta, que quase resultara em pancadaria e prisão.
O entrevero se deu na tumultuada entrada de uma das muitas festas da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, a apenas quatro blocos dali.
O pátio sempre colorido da faculdade, no qual se viam nas paredes pinturas e pichações horrendas de artistas modernosos, permitidas pela direção da escola, era palco constante de eventos mal organizados e cheios de estudantes ensandecidos. Sempre também ao som de bandas da mais abjeta música mineira, do mais tosco heavy metal, da mais calhorda new wave ou do mais escatológico punk rock. Além, é claro, de tonéis de álcool e toneladas de maconha e cocaína servindo de combustível pra moçada.
Um soldadinho bem escroto, integrante da guarnição convocada pela vizinhança irritada com a balbúrdia costumeira, não queria deixar Dudu entrar, alegando que o local estava cheio demais e que, de qualquer maneira, a farra seria interrompida logo em nome do bem-estar das famílias do entorno. Bêbado, Dudu mandou-o se foder.
“Vá se foder, meganha de merda!”, ele e a vodca berraram.
Imediatamente, um bando de cachorros fardados o cercou, latindo gordas ameaças, chamando-o de “filhinho de papai”, de “seu bosta” e de “seu escroto”, e ele teve de correr pra não apanhar. Os policiais ficaram rindo.
Dudu chegou arfando ao prédio onde morava, o edifício antigo de classe média, e desabou na soleira da portaria. Ficou observando os passarinhos saltitantes nas árvores da rua, gorjeando idiotamente aos primeiros raios do sol, e uma tristeza imensa pesou-lhe no peito e nas pálpebras. Desmaiou por alguns minutos até ser despertado por gritos animados como os pios dos passarinhos, vindos de meninos na garagem do edifício, e pelo barulho de boladas na parede chapiscada da rampa de entrada. Ele levantou e correu até lá.
Entre amigos – muitos deles quatro ou cinco anos mais novos e ainda não iniciados na vida noturna –, deu de ombros pra miséria espiritual que o engolira e pediu pra entrar na pelada, também a despeito do sapato de bico fino e da camisa de seda preta, tipo aquelas do Morrissey, que se recusou a tirar. O resultado foi que a ressaca colossal, toda a chateação com a lama vivida pouco antes com os canas e uma série de outros fatores de ordem psicossomática – conforme os médicos lhe explicariam – fizeram com que Dudu passasse, aos 17 anos, por uma crise inédita e crucial na (de) formação de sua personalidade.
Bastaram alguns minutos de corrida leve e de chutes sem muita direção na bola murcha, em um modorrento começo de dia em março de 1985, pra que ele começasse a se sentir mal. Mal pra caralho!
Erupções vermelhas e disformes surgiram no corpo – primeiro nos braços, depois no peito e no rosto. O suor excessivo, a hiperventilação, a incontrolável coceira, a tontura e a sensação de um bolo de farinha entalado na garganta ajudaram a piorar as coisas.
“Que é isso? Cê tá todo empolado!”, comentou Nando, um carinha boa praça, de 15 anos ou menos, morador do 201 e um dos craques do futebol de garagem.
Pânico. Coração acelerado.
Ele nem disse até logo. Subiu correndo as escadas do prédio até o apartamento onde morava, no terceiro andar, buscando refúgio, ajuda, ambos.
“Mãe, eu ‘tô’ morrendo”, ele disse, exasperado, à dona Vera, que lia o jornal, como sempre, sentadinha à mesa da copa.
Deixou-se cair como um saco de bosta no sofá, de frente pra TV, com a mão no pescoço, sufocado, mirando na tela o patético reflexo.
“Está parecendo algum tipo de alergia. Você comeu alguma coisa diferente?”
Não havia comido nada desde a tarde anterior. O último lanchinho havia sido um pão dormido com manteiga e café frio, antes de sair com alguns amigos pra mais uma aventura errática pelo chamado “Baixo Belô” – conjunto de dez ou 12 quarteirões coalhados de bares descoladinhos. Saíra, pra variar, como um caçador descontrolado em busca de algo ou de alguém que, como ele definia em pífias incursões bêbadas e baudelaireanas, pudesse dar sentido ao seu “microinferno repleto de flores do mal”.
“Eu... não... consigo... respirar”, respondeu à mãe, sentindo-se derreter num caldeirão de adrenalina.
Apavorada também, Dona Vera acordou Thaís, a irmã dele e médica da casa.
Ainda sonolenta, recuperando-se de um plantão no Pronto-Socorro, ela sugeriu que Dudu fosse à farmácia correndo e tomasse uma injeção.
“É alergia, sim. Pode dar um edema de glote, fechamento da garganta. Precisa de remédio”, disse ela, examinando o irmãozinho de perto.
Ele sentiu espasmos violentos na barriga. Soltou uns puns altos e fedorentos de medo e experimentou ondas de suor ainda maiores que as de quando estava perseguindo descoordenadamente a bola murcha na garagem, acompanhadas agora de calafrios.
Uma sensação de perda total de controle o arrebatou.
“Minha garganta vai fechar?”, gritou.
Sem perspectivas ou respostas, sem contar com a razão ou com pensamentos bacanas que pudessem abrir uma janela pro sol iluminar-lhe as ideias, Dudu, até então excessivamente seguro em sua morbidez ensaiada – um charme nonchalance de jovem metido a pós-moderno dos anos 1980 –, saiu como um bólido de pavor pela porta da rua.
De uma espécie de Lord Byron charmoso e de alma obscura, mas pensamentos rasos, ou de um Sartre dado a rompantes de existencialismo de almanaque e raciocínio turvo como o espelho de um pântano, a despeito do esforço em parecer nobre e filosófico todo o tempo, havia se transformado em uma criancinha mimada e histérica.
“Isso é a náusea?”, ele se perguntava.
Sentia-se um arremedo empobrecido de Maiakóvski, um dos muitos ídolos literários – transtornado, tornado, louco pelo desespero, sim, mas não pela dramática impossibilidade de um amor genuíno, proibido pela sincera amizade com o companheiro da musa Lílitchka, ou pela decepção com os rumos inauditos e frustrantes de uma revolução que tinha tudo pra ser do caralho. Ele perdera o prumo por um terror insano, incontrolável, desconhecido e repentino de morrer, só isso.
E não havia devaneios inspiradores sobre um utópico e definitivo balaço na cabeça que pudessem reduzir o desconforto. Ele sabia que jamais teria coragem pra isso.
O que sobrava, naquele turbilhão súbito e inexplicável de emoções, era a profundidade mental de um animalzinho acuado pela besta-fera da inexorabilidade.
“Eu vou morrer, vou morrer agora! Eu sei que vou!”, pensava, enquanto sentia-se flutuar como um anjo caído por sobre as calçadas da Savassi.
Transpassado por ondas cada vez mais violentas de destempero, seus pensamentos se misturavam e revolviam como escombros em um ciclone, impregnados do odor de flores pestilentas, e de peidos de pavor. Contorcia o rosto, incomodado também pelo cheiro agora pútrido das quaresmeiras de Beagá, por sua própria ignomínia refletida nos olhares opacos dos passantes, e tinha a boca seca. Não conseguia engolir nada, nem ar.
Dudu se via na iminência de um desmaio de verdade que, pra sorte dele, não aconteceu.
“Eu preciso de uma namorada... Preciso achar uma coisa pra fazer que me dê prazer, que me deixe feliz... Eu preciso... de um médico”.
De volta ao lar, sem saber com que forças e com que senso de direção havia conseguido fazer isso, correu pro quarto e deitou-se sem nem tirar os sapatos. Cobriu o corpo até o queixo, tremendo.
Dona Vera nem quis saber por onde ele havia andado. Encontrou uma caixa de polaramine esquecida na minifarmácia do banheiro e levou um comprimido ao filho, que o engoliu entre soluços.
“Mãe, eu vou morrer, não vou?”
Angelical e acolhedora, ela disse que não, que se mantivesse calmo, que tudo ficaria bem, que o tal edema de glote, caso houvesse um, de fato, cederia; que o sol, enfim, voltaria a brilhar. Dona Vera falava coisas assim e dava tapinhas nas costas dele, do mesmo jeito que fazia quando ele tinha seis anos e se queixava de medo do escuro.
“Tá”, respondeu, sem muita convicção, mas suspeitando de que a viagem ao inferno, ou pelo menos aquele capítulo dantesco da sua vida, poderia estar chegando ao fim.
Até que o sono o abraçou, mais pelo efeito do medicamento que pelo reconfortante e leve ritmo das batidas de mão de dona Vera.
Na manhã seguinte, depois de quase um dia inteiro de sono pesado, acreditando-se refeito da urticária misteriosa e da sensação de pânico que o levara à beira da loucura, Dudu foi a um médico indicado pela irmã.
Teve prioridade no abarrotado consultório do tal doutor, uma sumidade em clínica geral e um ébrio inveterado que, segundo fofocas da turma de Thaís, das quais ele tomava conhecimento pela própria irmã na mesa de almoço dos domingos, havia perdido qualquer rascunho de prazer pela vida de tanto lidar com o que chamava de “um aniquilante sentimento de finitude”. Tudo por ter trabalhado, por duas décadas, em unidades de tratamento intensivo precárias nas quais o que fugia à regra era a sobrevivência dos doentes.
Como atributos adicionais, o sujeito possuía um diploma de especialista em reações alérgicas e, mais importante, era um dos ex-tutores de Thaís, no recém-concluído curso de medicina.
As grandes olheiras sob os olhos cinzentos e apagados e os sulcos que cortavam o rosto do médico, formando profundos e assustadores feixes de rugas, embora ele não tivesse ainda 50 anos, quase chamaram mais a atenção do paciente-impaciente que a explicação que ele lhe deu, após uma breve anamnese e um exame clínico apressado.
“Meu jovem, o que você teve é o que chamamos de urticária colinérgica”, sentenciou.
“E eu vou morrer?”, perguntou Dudu, apertando a mesma tecla do dia anterior, mas com os batimentos cardíacos mais acelerados que a bateria de um punkcore californiano por jamais ter ouvido a palavra colinérgica na vida – e porque ela, aparentemente, dizia respeito a algo muito, muito grave.
“Não, não”, ele riu. “O que aconteceu é que seu organismo reagiu de forma um tanto incomum ao estresse emocional e físico e à grande ansiedade pela qual você certamente está passando”, acrescentou, soltando a fumaça do cigarro de piteira pelas narinas peludas.
O doutor prosseguiu:
“Com o esforço feito no exercício matinal, os edemas cutâneos apareceram e, provavelmente, você de fato correu o risco de ter um inchaço interno na garganta. Mas isso tudo passou, não passou? Isso tudo passa”, disse, com um rasgo do gato de Alice no país das maravilhas nos lábios – um sorriso forçado com o qual desejava soar otimista, mas que o deixava ainda mais temível.
“Afinal, você é novo e cheio de vida! E tem um futuro bacana pela frente! Mas, olha, enquanto essa coisa estiver aí, procure não se banhar com água muito fria ou exagerar nos exercícios, porque a urticária pode voltar. Fique tranquilo e tome esse remedinho aqui, de oito em oito horas. E mande um grande abraço à sua irmã”, concluiu o médico, entregando a Dudu o papel da receita.
Pelo que ele entendera, em sua ainda inconsistente forma de ver a “coisa”, não poderia nunca mais entrar em piscinas sem aquecimento, nadar no mar do Rio de Janeiro ou tomar banhos nas cachoeiras da Serra do Cipó. Também não poderia jogar bola ou fazer qualquer tipo de atividade física até o fim dos seus dias, sob pena de experimentar, no coração daquelas trevas inéditas e indesejáveis que o cobriam, o horror, o horror do dia anterior.
“Ok, ok... Minha vida vai oficialmente virar uma grande merda”, resumiu pra si, mentalmente, pouco antes de pegar o ônibus, em frente ao consultório, enquanto observava os braços em busca das tenebrosas manchas vermelhas.
O entrevero se deu na tumultuada entrada de uma das muitas festas da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, a apenas quatro blocos dali.
O pátio sempre colorido da faculdade, no qual se viam nas paredes pinturas e pichações horrendas de artistas modernosos, permitidas pela direção da escola, era palco constante de eventos mal organizados e cheios de estudantes ensandecidos. Sempre também ao som de bandas da mais abjeta música mineira, do mais tosco heavy metal, da mais calhorda new wave ou do mais escatológico punk rock. Além, é claro, de tonéis de álcool e toneladas de maconha e cocaína servindo de combustível pra moçada.
Um soldadinho bem escroto, integrante da guarnição convocada pela vizinhança irritada com a balbúrdia costumeira, não queria deixar Dudu entrar, alegando que o local estava cheio demais e que, de qualquer maneira, a farra seria interrompida logo em nome do bem-estar das famílias do entorno. Bêbado, Dudu mandou-o se foder.
“Vá se foder, meganha de merda!”, ele e a vodca berraram.
Imediatamente, um bando de cachorros fardados o cercou, latindo gordas ameaças, chamando-o de “filhinho de papai”, de “seu bosta” e de “seu escroto”, e ele teve de correr pra não apanhar. Os policiais ficaram rindo.
Dudu chegou arfando ao prédio onde morava, o edifício antigo de classe média, e desabou na soleira da portaria. Ficou observando os passarinhos saltitantes nas árvores da rua, gorjeando idiotamente aos primeiros raios do sol, e uma tristeza imensa pesou-lhe no peito e nas pálpebras. Desmaiou por alguns minutos até ser despertado por gritos animados como os pios dos passarinhos, vindos de meninos na garagem do edifício, e pelo barulho de boladas na parede chapiscada da rampa de entrada. Ele levantou e correu até lá.
Entre amigos – muitos deles quatro ou cinco anos mais novos e ainda não iniciados na vida noturna –, deu de ombros pra miséria espiritual que o engolira e pediu pra entrar na pelada, também a despeito do sapato de bico fino e da camisa de seda preta, tipo aquelas do Morrissey, que se recusou a tirar. O resultado foi que a ressaca colossal, toda a chateação com a lama vivida pouco antes com os canas e uma série de outros fatores de ordem psicossomática – conforme os médicos lhe explicariam – fizeram com que Dudu passasse, aos 17 anos, por uma crise inédita e crucial na (de) formação de sua personalidade.
Bastaram alguns minutos de corrida leve e de chutes sem muita direção na bola murcha, em um modorrento começo de dia em março de 1985, pra que ele começasse a se sentir mal. Mal pra caralho!
Erupções vermelhas e disformes surgiram no corpo – primeiro nos braços, depois no peito e no rosto. O suor excessivo, a hiperventilação, a incontrolável coceira, a tontura e a sensação de um bolo de farinha entalado na garganta ajudaram a piorar as coisas.
“Que é isso? Cê tá todo empolado!”, comentou Nando, um carinha boa praça, de 15 anos ou menos, morador do 201 e um dos craques do futebol de garagem.
Pânico. Coração acelerado.
Ele nem disse até logo. Subiu correndo as escadas do prédio até o apartamento onde morava, no terceiro andar, buscando refúgio, ajuda, ambos.
“Mãe, eu ‘tô’ morrendo”, ele disse, exasperado, à dona Vera, que lia o jornal, como sempre, sentadinha à mesa da copa.
Deixou-se cair como um saco de bosta no sofá, de frente pra TV, com a mão no pescoço, sufocado, mirando na tela o patético reflexo.
“Está parecendo algum tipo de alergia. Você comeu alguma coisa diferente?”
Não havia comido nada desde a tarde anterior. O último lanchinho havia sido um pão dormido com manteiga e café frio, antes de sair com alguns amigos pra mais uma aventura errática pelo chamado “Baixo Belô” – conjunto de dez ou 12 quarteirões coalhados de bares descoladinhos. Saíra, pra variar, como um caçador descontrolado em busca de algo ou de alguém que, como ele definia em pífias incursões bêbadas e baudelaireanas, pudesse dar sentido ao seu “microinferno repleto de flores do mal”.
“Eu... não... consigo... respirar”, respondeu à mãe, sentindo-se derreter num caldeirão de adrenalina.
Apavorada também, Dona Vera acordou Thaís, a irmã dele e médica da casa.
Ainda sonolenta, recuperando-se de um plantão no Pronto-Socorro, ela sugeriu que Dudu fosse à farmácia correndo e tomasse uma injeção.
“É alergia, sim. Pode dar um edema de glote, fechamento da garganta. Precisa de remédio”, disse ela, examinando o irmãozinho de perto.
Ele sentiu espasmos violentos na barriga. Soltou uns puns altos e fedorentos de medo e experimentou ondas de suor ainda maiores que as de quando estava perseguindo descoordenadamente a bola murcha na garagem, acompanhadas agora de calafrios.
Uma sensação de perda total de controle o arrebatou.
“Minha garganta vai fechar?”, gritou.
Sem perspectivas ou respostas, sem contar com a razão ou com pensamentos bacanas que pudessem abrir uma janela pro sol iluminar-lhe as ideias, Dudu, até então excessivamente seguro em sua morbidez ensaiada – um charme nonchalance de jovem metido a pós-moderno dos anos 1980 –, saiu como um bólido de pavor pela porta da rua.
De uma espécie de Lord Byron charmoso e de alma obscura, mas pensamentos rasos, ou de um Sartre dado a rompantes de existencialismo de almanaque e raciocínio turvo como o espelho de um pântano, a despeito do esforço em parecer nobre e filosófico todo o tempo, havia se transformado em uma criancinha mimada e histérica.
“Isso é a náusea?”, ele se perguntava.
Sentia-se um arremedo empobrecido de Maiakóvski, um dos muitos ídolos literários – transtornado, tornado, louco pelo desespero, sim, mas não pela dramática impossibilidade de um amor genuíno, proibido pela sincera amizade com o companheiro da musa Lílitchka, ou pela decepção com os rumos inauditos e frustrantes de uma revolução que tinha tudo pra ser do caralho. Ele perdera o prumo por um terror insano, incontrolável, desconhecido e repentino de morrer, só isso.
E não havia devaneios inspiradores sobre um utópico e definitivo balaço na cabeça que pudessem reduzir o desconforto. Ele sabia que jamais teria coragem pra isso.
O que sobrava, naquele turbilhão súbito e inexplicável de emoções, era a profundidade mental de um animalzinho acuado pela besta-fera da inexorabilidade.
“Eu vou morrer, vou morrer agora! Eu sei que vou!”, pensava, enquanto sentia-se flutuar como um anjo caído por sobre as calçadas da Savassi.
Transpassado por ondas cada vez mais violentas de destempero, seus pensamentos se misturavam e revolviam como escombros em um ciclone, impregnados do odor de flores pestilentas, e de peidos de pavor. Contorcia o rosto, incomodado também pelo cheiro agora pútrido das quaresmeiras de Beagá, por sua própria ignomínia refletida nos olhares opacos dos passantes, e tinha a boca seca. Não conseguia engolir nada, nem ar.
Dudu se via na iminência de um desmaio de verdade que, pra sorte dele, não aconteceu.
“Eu preciso de uma namorada... Preciso achar uma coisa pra fazer que me dê prazer, que me deixe feliz... Eu preciso... de um médico”.
De volta ao lar, sem saber com que forças e com que senso de direção havia conseguido fazer isso, correu pro quarto e deitou-se sem nem tirar os sapatos. Cobriu o corpo até o queixo, tremendo.
Dona Vera nem quis saber por onde ele havia andado. Encontrou uma caixa de polaramine esquecida na minifarmácia do banheiro e levou um comprimido ao filho, que o engoliu entre soluços.
“Mãe, eu vou morrer, não vou?”
Angelical e acolhedora, ela disse que não, que se mantivesse calmo, que tudo ficaria bem, que o tal edema de glote, caso houvesse um, de fato, cederia; que o sol, enfim, voltaria a brilhar. Dona Vera falava coisas assim e dava tapinhas nas costas dele, do mesmo jeito que fazia quando ele tinha seis anos e se queixava de medo do escuro.
“Tá”, respondeu, sem muita convicção, mas suspeitando de que a viagem ao inferno, ou pelo menos aquele capítulo dantesco da sua vida, poderia estar chegando ao fim.
Até que o sono o abraçou, mais pelo efeito do medicamento que pelo reconfortante e leve ritmo das batidas de mão de dona Vera.
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Na manhã seguinte, depois de quase um dia inteiro de sono pesado, acreditando-se refeito da urticária misteriosa e da sensação de pânico que o levara à beira da loucura, Dudu foi a um médico indicado pela irmã.
Teve prioridade no abarrotado consultório do tal doutor, uma sumidade em clínica geral e um ébrio inveterado que, segundo fofocas da turma de Thaís, das quais ele tomava conhecimento pela própria irmã na mesa de almoço dos domingos, havia perdido qualquer rascunho de prazer pela vida de tanto lidar com o que chamava de “um aniquilante sentimento de finitude”. Tudo por ter trabalhado, por duas décadas, em unidades de tratamento intensivo precárias nas quais o que fugia à regra era a sobrevivência dos doentes.
Como atributos adicionais, o sujeito possuía um diploma de especialista em reações alérgicas e, mais importante, era um dos ex-tutores de Thaís, no recém-concluído curso de medicina.
As grandes olheiras sob os olhos cinzentos e apagados e os sulcos que cortavam o rosto do médico, formando profundos e assustadores feixes de rugas, embora ele não tivesse ainda 50 anos, quase chamaram mais a atenção do paciente-impaciente que a explicação que ele lhe deu, após uma breve anamnese e um exame clínico apressado.
“Meu jovem, o que você teve é o que chamamos de urticária colinérgica”, sentenciou.
“E eu vou morrer?”, perguntou Dudu, apertando a mesma tecla do dia anterior, mas com os batimentos cardíacos mais acelerados que a bateria de um punkcore californiano por jamais ter ouvido a palavra colinérgica na vida – e porque ela, aparentemente, dizia respeito a algo muito, muito grave.
“Não, não”, ele riu. “O que aconteceu é que seu organismo reagiu de forma um tanto incomum ao estresse emocional e físico e à grande ansiedade pela qual você certamente está passando”, acrescentou, soltando a fumaça do cigarro de piteira pelas narinas peludas.
O doutor prosseguiu:
“Com o esforço feito no exercício matinal, os edemas cutâneos apareceram e, provavelmente, você de fato correu o risco de ter um inchaço interno na garganta. Mas isso tudo passou, não passou? Isso tudo passa”, disse, com um rasgo do gato de Alice no país das maravilhas nos lábios – um sorriso forçado com o qual desejava soar otimista, mas que o deixava ainda mais temível.
“Afinal, você é novo e cheio de vida! E tem um futuro bacana pela frente! Mas, olha, enquanto essa coisa estiver aí, procure não se banhar com água muito fria ou exagerar nos exercícios, porque a urticária pode voltar. Fique tranquilo e tome esse remedinho aqui, de oito em oito horas. E mande um grande abraço à sua irmã”, concluiu o médico, entregando a Dudu o papel da receita.
Pelo que ele entendera, em sua ainda inconsistente forma de ver a “coisa”, não poderia nunca mais entrar em piscinas sem aquecimento, nadar no mar do Rio de Janeiro ou tomar banhos nas cachoeiras da Serra do Cipó. Também não poderia jogar bola ou fazer qualquer tipo de atividade física até o fim dos seus dias, sob pena de experimentar, no coração daquelas trevas inéditas e indesejáveis que o cobriam, o horror, o horror do dia anterior.
“Ok, ok... Minha vida vai oficialmente virar uma grande merda”, resumiu pra si, mentalmente, pouco antes de pegar o ônibus, em frente ao consultório, enquanto observava os braços em busca das tenebrosas manchas vermelhas.
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