Metade dos anos 80. Zona Sul de Beagá.
Um artista plástico na flor dos 20 e poucos anos e, segundo alguns, muito à frente nem tanto de seu tempo, mas certamente de sua cidade – por seus méritos, cultura, conceitos e a estética de seus trabalhos, claro, mas também em razão do tradicionalismo e do provincianismo de boa parte de seus contemporâneos. Exilado em Minas, filho único, mora com a mãe, vive sem grana e não desiste nunca!
O cara tem obsessão, entre outras coisas, por cinema expressionista alemão, futurismo russo, spleen e rock depressivo, elementos que povoam seus quadros, inspirados em filmes, poemas, discos, livros. Em música, também curte uma coisa ou outra de rock clássico e, no caso dos compositores eruditos, prefere os muito diferentes: Erik Satie, Schoenberg, Boulez.
Está quase o tempo todo de preto, roupas e tênis surrados, e vai a pé de um bar a outro, não importa a distância, com uma pastinha de rascunhos debaixo do braço. É visto mais à noite do que de dia e a figura dele, vagando pela Contorno em direção ao Santa Efigênia, nas madrugadas, ao voltar pra casa, costuma espantar pro outro lado da avenida mocinhas que porventura caminhem em sentido contrário – sobretudo as que leram alguma coisa de Edgar Allan Poe ou assistiram ao Nosferatu, de Murnau.
Exageros à parte, ele capricha no topete caído sobre o rosto – embora um pouco mais esfarrapado, lembra um integrante de uma daquelas bandas de new rock de Manchester – e está sempre com alguma grande questão existencial em mente e no coração.
Pra época, poderia ser um perfil até comum, sem muito apelo... literário; não se tratasse do graaaaaaaande...
Deixemos de lado o nome do razaz.
Basta dizer que era (e ainda é) uma peça raríssima, um sujeito genial e muito querido que, falo sem medo de errar, entrou pra história daquela década e pra história de pessoas que a viveram, nessa roça que é a capital dos mineiros.
Fomos muito amigos. Tomamos centenas de cervejas e dividimos alegrias e aflições. Éramos, basicamente, assim como um monte de companheiros, uns escrotos: conseguíamos extrair motivos pra gargalhar e tirar sarro de quase tudo. O que, no caso, jamais carecia de esforços hercúleos, já que o artista vivia se envolvendo em situações hilariantes.
Conto aqui uma delas, mas garanto que há um sem-número de passagens desse naipe que precisariam de um editor zen pra que coubessem, digamos, em todos os livros e volumes da Bíblia, publicados desde o coquetel de lançamento.
Era um dia de semana ensolarado, circa 1986, quando o artista bateu à minha porta. As visitas dele eram comuns, principalmente depois do almoço: ficávamos a tarde toda escutando discos bacanas – íamos de Led Zeppelin a Escorbuto Atômico, passando por Liszt e Joy Division – e falando merda até dar a hora de ir pra noite, como vampiros que deixam o túmulo pra fazer a ceia.
Naquele tarde, porém, o artista estava diferente: inquieto, quase histérico, desesperado.
“Você viu minha namorada?”, ele me perguntou, os lábios secos de tanta ansiedade.
A garota era uma conhecida comum, de bem antes da nossa amizade, e os dois pareciam caminhar pro altar, apaixonados. Na noite anterior, pelo que me contou, haviam discutido e ela, numa crise de ciúmes, deixara o bar em que estavam puta da vida, sem dizer pra onde iria. Ele também foi embora e, pela manhã, ao procurá-la, ficou sabendo que ela não aparecera em casa.
“Tenho medo. Ela pode ter feito alguma besteira”, ele me falou, com a voz embargada.
“Calma, meu velho, entra aqui e vamos conversar”, eu disse, imaginando o abacaxi que tínhamos que descascar.
Esqueci de mencionar: o artista era um neurótico woodyalleniano. Hipocondríaco, excessivamente temoroso da morte – só os idiotas não o são, diria Woody –, filosoficamente dividido entre algo como um niilismo radical e um epicurismo pueril e, da boca pra fora, ateu – do tipo que, em momentos de angústia, não dispensa uma Ave Mariazinha silenciosa.
Conversa vai, conversa vem, nada de conseguir fazê-lo se acalmar. Telefonamos pra um bocado de gente em busca de informações sobre o paradeiro da namorada. E necas.
Percebendo que o cara estava a ponto de ter uma síncope, sugeri que tomasse um calmante. Eu não tinha nada parecido com isso em casa e resolvi pegar, escondido, uma aspirina no armário do banheiro.
“Engole essa pílula aqui que você vai se sentir melhor. Esse medicamento é a última novidade do mercado em tranquilizantes”, garanti.
Ele não pensou duas vezes: mandou o remédio goela abaixo, sem água.
O telefone, finalmente, tocou: era alguém dando o retorno de uma das ligações e a notícia era boa. As circunstâncias do breve “desaparecimento” da namorada não cabem aqui – a história é até sem graça –, mas o fato é que ela já estava em casa, sóbria e salva.
O artista me olhou com o semblante de um iogue e observou que o remedinho era muito bom! Ele se dizia em paz com o mundo e consigo mesmo, sentimento que se amplificava por saber que a amada estava viva e segura.
Foi então que cometi um erro terrível, fazendo um comentário totalmente desnecessário que tinha como objetivo apenas destacar minha participação determinante no episódio:
“Pois é, a substância ativa desse medicamento que arrumei pra você, não sei se sabe, faz com que a pressão sanguínea abaixe e deixa a pessoa nesse estado. Graças a mim, tudo ficou mais fácil, né?”
O rosto dele se transfigurou.
“Abaixa a pressão? Você ficou louco? Puta que o pariu, eu já sofro de pressão baixa! É por isso que estou com esse frio todo. Vou morrer! A culpa é sua!”, ele berrou.
Estendido na cama, o artista tremia, suava frio e repetia como um mantra “me fodi, Deus, me fodi, Deus, me fodi, Deus”. Pra que ele pudesse voltar ao normal, gastei umas duas horas: precisei fazer com que bebesse uns três litros de água com açúcar e jurar “pela morte da minha mãe”, umas mil vezes, que o que ele tomara fora uma inocente aspirina – na verdade, um pó ácido extraído da casca do Salgueiro, desde a Grécia Antiga, que tinha poderoso efeito antitérmico e analgésico e não poderia fazer tão mal.
Recomposto, e na saída rumo ao reencontro com a namorada, ele implorou que eu jamais mencionasse aquele mico a alguém.
Ops.
Um artista plástico na flor dos 20 e poucos anos e, segundo alguns, muito à frente nem tanto de seu tempo, mas certamente de sua cidade – por seus méritos, cultura, conceitos e a estética de seus trabalhos, claro, mas também em razão do tradicionalismo e do provincianismo de boa parte de seus contemporâneos. Exilado em Minas, filho único, mora com a mãe, vive sem grana e não desiste nunca!
O cara tem obsessão, entre outras coisas, por cinema expressionista alemão, futurismo russo, spleen e rock depressivo, elementos que povoam seus quadros, inspirados em filmes, poemas, discos, livros. Em música, também curte uma coisa ou outra de rock clássico e, no caso dos compositores eruditos, prefere os muito diferentes: Erik Satie, Schoenberg, Boulez.
Está quase o tempo todo de preto, roupas e tênis surrados, e vai a pé de um bar a outro, não importa a distância, com uma pastinha de rascunhos debaixo do braço. É visto mais à noite do que de dia e a figura dele, vagando pela Contorno em direção ao Santa Efigênia, nas madrugadas, ao voltar pra casa, costuma espantar pro outro lado da avenida mocinhas que porventura caminhem em sentido contrário – sobretudo as que leram alguma coisa de Edgar Allan Poe ou assistiram ao Nosferatu, de Murnau.
Exageros à parte, ele capricha no topete caído sobre o rosto – embora um pouco mais esfarrapado, lembra um integrante de uma daquelas bandas de new rock de Manchester – e está sempre com alguma grande questão existencial em mente e no coração.
Pra época, poderia ser um perfil até comum, sem muito apelo... literário; não se tratasse do graaaaaaaande...
Deixemos de lado o nome do razaz.
Basta dizer que era (e ainda é) uma peça raríssima, um sujeito genial e muito querido que, falo sem medo de errar, entrou pra história daquela década e pra história de pessoas que a viveram, nessa roça que é a capital dos mineiros.
Fomos muito amigos. Tomamos centenas de cervejas e dividimos alegrias e aflições. Éramos, basicamente, assim como um monte de companheiros, uns escrotos: conseguíamos extrair motivos pra gargalhar e tirar sarro de quase tudo. O que, no caso, jamais carecia de esforços hercúleos, já que o artista vivia se envolvendo em situações hilariantes.
Conto aqui uma delas, mas garanto que há um sem-número de passagens desse naipe que precisariam de um editor zen pra que coubessem, digamos, em todos os livros e volumes da Bíblia, publicados desde o coquetel de lançamento.
Era um dia de semana ensolarado, circa 1986, quando o artista bateu à minha porta. As visitas dele eram comuns, principalmente depois do almoço: ficávamos a tarde toda escutando discos bacanas – íamos de Led Zeppelin a Escorbuto Atômico, passando por Liszt e Joy Division – e falando merda até dar a hora de ir pra noite, como vampiros que deixam o túmulo pra fazer a ceia.
Naquele tarde, porém, o artista estava diferente: inquieto, quase histérico, desesperado.
“Você viu minha namorada?”, ele me perguntou, os lábios secos de tanta ansiedade.
A garota era uma conhecida comum, de bem antes da nossa amizade, e os dois pareciam caminhar pro altar, apaixonados. Na noite anterior, pelo que me contou, haviam discutido e ela, numa crise de ciúmes, deixara o bar em que estavam puta da vida, sem dizer pra onde iria. Ele também foi embora e, pela manhã, ao procurá-la, ficou sabendo que ela não aparecera em casa.
“Tenho medo. Ela pode ter feito alguma besteira”, ele me falou, com a voz embargada.
“Calma, meu velho, entra aqui e vamos conversar”, eu disse, imaginando o abacaxi que tínhamos que descascar.
Esqueci de mencionar: o artista era um neurótico woodyalleniano. Hipocondríaco, excessivamente temoroso da morte – só os idiotas não o são, diria Woody –, filosoficamente dividido entre algo como um niilismo radical e um epicurismo pueril e, da boca pra fora, ateu – do tipo que, em momentos de angústia, não dispensa uma Ave Mariazinha silenciosa.
Conversa vai, conversa vem, nada de conseguir fazê-lo se acalmar. Telefonamos pra um bocado de gente em busca de informações sobre o paradeiro da namorada. E necas.
Percebendo que o cara estava a ponto de ter uma síncope, sugeri que tomasse um calmante. Eu não tinha nada parecido com isso em casa e resolvi pegar, escondido, uma aspirina no armário do banheiro.
“Engole essa pílula aqui que você vai se sentir melhor. Esse medicamento é a última novidade do mercado em tranquilizantes”, garanti.
Ele não pensou duas vezes: mandou o remédio goela abaixo, sem água.
O telefone, finalmente, tocou: era alguém dando o retorno de uma das ligações e a notícia era boa. As circunstâncias do breve “desaparecimento” da namorada não cabem aqui – a história é até sem graça –, mas o fato é que ela já estava em casa, sóbria e salva.
O artista me olhou com o semblante de um iogue e observou que o remedinho era muito bom! Ele se dizia em paz com o mundo e consigo mesmo, sentimento que se amplificava por saber que a amada estava viva e segura.
Foi então que cometi um erro terrível, fazendo um comentário totalmente desnecessário que tinha como objetivo apenas destacar minha participação determinante no episódio:
“Pois é, a substância ativa desse medicamento que arrumei pra você, não sei se sabe, faz com que a pressão sanguínea abaixe e deixa a pessoa nesse estado. Graças a mim, tudo ficou mais fácil, né?”
O rosto dele se transfigurou.
“Abaixa a pressão? Você ficou louco? Puta que o pariu, eu já sofro de pressão baixa! É por isso que estou com esse frio todo. Vou morrer! A culpa é sua!”, ele berrou.
Estendido na cama, o artista tremia, suava frio e repetia como um mantra “me fodi, Deus, me fodi, Deus, me fodi, Deus”. Pra que ele pudesse voltar ao normal, gastei umas duas horas: precisei fazer com que bebesse uns três litros de água com açúcar e jurar “pela morte da minha mãe”, umas mil vezes, que o que ele tomara fora uma inocente aspirina – na verdade, um pó ácido extraído da casca do Salgueiro, desde a Grécia Antiga, que tinha poderoso efeito antitérmico e analgésico e não poderia fazer tão mal.
Recomposto, e na saída rumo ao reencontro com a namorada, ele implorou que eu jamais mencionasse aquele mico a alguém.
Ops.
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