(esta história me foi contada por um dos amigos mais loucos)
A Praça da Liberdade tinha um movimento atípico naquela manhã de quinta-feira, 23 de abril de 1985. Centenas de pessoas se aglomeravam no entorno das palmeiras imperiais. E não eram os habituais personagens das noitadas de Belô, gente serenamente alucinada que pousava nos bancos ou se aboletava no coreto da praça, até e além do raiar do sol, comendo sanduíches, tocando violão e bebendo os últimos goles de vinho e latinhas de cerveja depois de um périplo pelos botecos da região. Nem mesmo a turma que fazia exercícios físicos bem cedo, talvez pra purgar o corpo e a alma de pecados cometidos quando pertencia ao grupo anterior.
Eram senhoras e senhores respeitáveis, vestidos formalmente e de cabelos brancos ou pintados; meninas e meninos de cabelos longos ou curtos e olhos brilhantes e sóbrios; homens e mulheres com pinta de profissionais liberais, funcionários públicos ou empregados de grandes corporações que haviam estacionado perto dali seus carros do ano. Também havia muita gente simples, desempregados ou assalariados sem dinheiro pra ter carros; gente branca ou parda ou negra que pegava ônibus lotados pra trabalhar cedo em repartições, escolas, hospitais, corretoras de imóveis, lojas, construções.
E todos transbordavam tristeza – uns rezavam, outros choravam; alguns aproveitavam o movimento pra vender picolés, água e refrigerantes, mas sem transparecer alegria pelos trocados recebidos.
“Está muito agitado isso aqui, hem?”, Helvécio observou, com o braço direito apertando Andréa junto ao peito, confiante como há muito não se sentia. Os dois haviam acabado de acordar e saíram pra tomar o café da manhã, passando antes pela praça.
“Essas pessoas todas estão aqui pro velório do Tancredo Neves. O corpo vai chegar ao Palácio da Liberdade à tarde. Eu tinha me esquecido completamente desse detalhe”, ela disse.
“Ah, é, o presidente morto antes de ser empossado. Vi alguma coisa no jornal”, comentou Helvécio, que começava a se sentir estranho e registrava mentalmente um tipo de esquentamento cutâneo no braço, o mesmo que usara havia pouco pra abraçar a companheira.
Curiosa, Andréa agarrou a mão do novo namorado, puxou-o e os dois se embrenharam na multidão que se formava nas imediações do Palácio da Liberdade, onde o corpo de Tancredo seria velado. Acotovelando-se, dando e sofrendo empurrões, conseguiram se aproximar das grades da imponente sede do governo mineiro.
“Não acho boa ideia ficar no meio dessa gente toda, Andréa”, ele disse, suando mais que o normal e dando espiadas seguidas no braço quente, onde manchas vermelhas começavam a pipocar.
“Vamos embora daqui agora?”, acrescentou.
“Não seja medroso, gatinho”, ela respondeu.
A menção ao suposto medo que ele poderia estar sentindo foi como uma chave virada que desencadeou um estrondoso e complexo processo elétrico nos neurônios de Helvécio. Uma onda de adrenalina elevou-se da barriga ao peito e, impactado, o coração passou a bater em velocidade extraordinária. A camisa preta que ele vestia desde a noite anterior parecia ter se transformado em um escafandro apertado. As coceiras pelo corpo e a sensação de sufocamento, bem conhecidas, o dominaram.
Helvécio queria gritar, dar socos e pontapés a esmo pra se livrar do rato que lhe comia das entranhas à pele, mas não conseguiu fazer nada disso: ficou estático, em um torpor jamais experimentado.
“Gato, você está pálido. Tá tudo bem?”, Andréa perguntou, ao notar que o companheiro havia simplesmente estacionado no meio da avenida.
Na verdade, ele parecia realmente ter sido congelado, a não ser por umas caretas grotescas e repetitivas, como se estivesse tentando desentupir os ouvidos, e por uma dança louca das pupilas nas órbitas dos olhos, o que a fez pensar em algum tipo de possessão.
“Tem razão, é melhor a gente sair daqui. Vem, vamos pra Savassi. Vem”, Andréa disse, com relativa calma na voz, sacando que algo de muito esquisito ocorria com ele e puxando-o em direção ao canteiro central da Avenida Cristóvão Colombo.
O problema é que ele não se moveu. E não pronunciou palavras inteligíveis que pudessem dar a ela pistas das sensações que o invadiam. Começou a gemer, primeiro baixinho, e depois em tons mais elevados, até que vociferava como a vítima recente de um desastre, ainda sem que vogais e consoantes formassem combinações passíveis de compreensão.
“Slartbaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaalstraaaaaaaaaaafffffffffffffffffffeeeeeee eeee ee ee ee e eeeeeegggggggggggggggghhhhhhhhhhh”, ele gritou.
Uma senhora bem ao lado se assustou com ele e também deu um berro de pavor. Um homem próximo dela se amedrontou subitamente com os gritos de ambos e, por impulso, provavelmente imaginando que as manifestações haviam sido motivadas por algo muito ruim, tentou deixar de qualquer maneira o metro quadrado de asfalto que dividia com outras três ou quatro pessoas.
Naturalmente, como na vizinhança daquele metro quadrado os espaços livres de pessoas eram bastante escassos, houve uma reação em cadeia: primeiro dezenas e depois centenas de homens, mulheres e crianças, assustados com gritos e empurrões que se multiplicavam, começaram a se esforçar, ao mesmo tempo, pra sair de onde estavam.
O tumulto, acompanhado de atitudes defensivas das mais primitivas, como puxões de cabelo, dedadas nos olhos e pisoteamento, tomou conta da multidão. Também por puro instinto de sobrevivência, Helvécio saiu do transe que o pânico lhe provocara e aderiu à violência libertadora que contaminava a turba. Andréa fez o mesmo, mas, menor e com mais habilidade e tranquilidade que o desajeitado e truculento Helvécio, conseguiu se safar sem arranhões.
Em pouco tempo, os dois já reduziam a velocidade dos passos na descida da avenida em direção à Praça da Savassi, sentindo-se salvos da confusão.
“Cara, o que foi aquilo? Você viu o que você fez?”, Andréa perguntou, ofegante, sentando-se no muro de um dos canteiros da praça, na esquina da Avenida Getúlio Vargas. “Pode até ter morrido gente ali, Helvécio. E a culpa foi sua!”, ela completou.
“É, eu sei”, ele disse, limpando o sangue que corria do supercílio e um pouco surpreso por não acusar o menor vestígio de remorso.
Pelo contrário, sentia um inusitado prazer em ter iniciado, mesmo que supostamente, a bagunça, que culminou, ele soube mais tarde – também sem nenhum arrependimento e até com uma pontada de mórbida satisfação –, em um saldo trágico: sete mortos, esmagados contra as grades do Palácio da Liberdade, e dezenas de feridos.
Um descalabro que, segundo a TV, o rádio e os jornais, havia sido causado apenas pelo fato de milhares de pessoas terem se reunido de maneira desorganizada em um local inadequado. Todas bastante ansiosas pra se despedir de um presidente que poderia salvar o país e, ironicamente, vítima de uma doença arrebatadora, sequer chegou a ser empossado.
Helvécio entrou em casa minutos depois, com a camisa preta rasgada e uma nódoa de sangue coagulado na sobrancelha esquerda. A mãe dele, sentada à mesa do café, deslocou os olhos do jornal para o filho, em farrapos, e deu um salto da cadeira.
“Menino, você brigou na rua?”, ela disse.
“Briguei, mãe, mas foi comigo mesmo.”
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