sábado, 30 de outubro de 2010

Câmbio Negro, desligo

Por Evaldo Magalhães


Não, não havia Internet nos anos 80.

Essa história de fazer sem maiores dificuldades os tais downloads gratuitos de músicas e Cds de bandas ou artistas festejados ou obscuros, por exemplo – sem depender da boa vontade de pessoas com os devidos canais de importação e pagar uma fortuna pra receber os discos –, era pura ficção científica.

E pra quem, como eu, era apaixonado por rock “alternativo”, principalmente, a Câmbio Negro, loja do monstruoso Marcelo e do sinistro Claude – um templo ao rock'n'roll erguido no terceiro andar da mal frequentada Galeria Praça 7, na Rio de Janeiro quase esquina com Afonso Pena –, era uma espécie de Google físico daquela época, em Beagá.

A diferença é que o serviço não apenas era pago, como podia sair caro pra caralho!

Há menos de dez anos, Marcelo e Claude me contaram, e juraram de pés juntos, durante show um tanto melancólico que marcou o reencontro no palco do pessoal do Último Número (banda da qual Claude era o baterista), que foram eles os grandes inspiradores de Nick Hornby pra criar o livro Alta Fidelidade. Aquele livro delicioso e que virou filme, em que Rob Fleming, alterego do escritor, é dono de uma loja de discos e resolve passar a limpo todos os seus casos amorosos.

Disseram que o inglês esteve em Minas Gerais, nos 80s, se não me falha a memória, e que ficou encantado com a Câmbio Negro e a fauna que circulava por lá.

Não levei a história muito a sério, mas teria sido na loja de Marcelo e Claude que ele aprendeu, entre outras coisas, como funcionava a arte de lucrar um bom dinheiro com a exploração desavergonhada da boa fé e da desenfreada paixão de roqueiros nerds por seus ídolos, o que é mostrado no livro. Um dos expedientes assimilados por Hornby a partir de conversas com a dupla seria o de fazer, por meio de muita enrolação e conversa fiada, com que discos não tão difíceis de encontrar fossem tidos como cálices sagrados da indústria fonográfica.

Com esse e outros catches, que demandavam do vendedor certa dose de vigarice, justificava-se o alto preço cobrado de jovens espinhentos pra que pudessem saborear orgasmicamente e ostentar metidamente por aí algumas suculentas bolachas de vinil.

Mesmo sendo um nerd espinhento que ainda não tinha lido Alta Fidelidade – mesmo porque o livro ainda não havia sido escrito –, eu sacava, ou pensava que sacava, muito bem esse golpe!

Sempre tranquilões, “como se” tivessem acabado de fumar um baseado, mas distantes e frios com boa parte dos clientes – comportamento justificável, já que tinha muito nego mala que passava o dia inteiro na Câmbio Negro! –, os caras pareciam baixar a guarda, como que por um passe de mágica, quando a gente demonstrava ter um conhecimento decente de rock'n'roll. Ficavam “amiguinhos” do freguês, sim, mas isso era só uma parte do plano. Confiança mútua estabelecida, colocavam os esquemas em prática. Com aqueles dois ludibriadores, toda cuidado do mundo era pouco!

Pois bem.

Certa vez ganhei de uma colega de colégio dois discos relativamente raros que haviam sido deixados como herança, só que sem herdeiros interessados, pelo pai dela, recém-falecido: o Cricklewood Green (1970), do Ten Years After, e o In-a-gadda-da-vida (1968), do Iron Butterfly. O presente me foi dado de bobeira mesmo, durante uma festa na casa dessa menina. Vi os discos e disse “Puxa, que sensacional! São raríssmos!”. Ela sorriu e me mandou levá-los pra casa.

Como, na ocasião, eu estava um pouco cansado daquele tipo de rock, que eu e meu irmão mais velho (que eu) vivíamos escutando em discos próprios ou em fitas Basf amarelas, gravadas de amigos, resolvi botar os dois vinis debaixo do braço e ir à Câmbio Negro, pra tentar umas trocas.

Embora fiel a grupos fundamentais na minha formação como Led Zeppelin e Genesis, com os quais tive a cabeça feita ainda menino, graças ao tal irmão, queria muito escutar e adquirir sons novos – muitos dos quais apenas ouvira falar, pescando conversas de uns poucos amigos iniciados na nova ordem do rock pós-Sex Pistols, se é que me entendem...

Coisas revolucionárias e mesmo esdrúxulas como Devo, Elvis Costello, Adam and the ants, Gary Numan, um monte de gente do recente pós-punk, estrangeiro e brasileiro, e até do idolatrado David Bowie, que, pelo que me contavam, deixara havia muito de ser aquele extraterrestre andrógino do anos 70 e assumira mil faces, desde então.

Cheguei à Câmbio com os discos dentro de uma sacola de supermercado, bem mocados, e pedi ao Marcelo, praticamente cochichando, pra ele dar uma olhada no “material”. Parecia que eu trazia amostras da melhor safra de haxixe marroquino de todos os tempos, tamanho o sigilo que quis empregar ao momento.

“Você quer vender ou trocar?”, ele perguntou, monocórdico, depois de dar uma espiada nas capas.

“Trocar”, anunciei, animado.

“Pode procurar alguma coisa aí. Dependendo do que você quiser, dá jogo”, ele disse, já colocando os dois discos debaixo do balcão – o que me preocupou.

Estralei os dedos e comecei a vasculhar as caixas da loja. Separei um Clash, uns dois Ramones, uns três Bowies e pensei, sinceramente, que ainda cabiam mais discos na cesta do escambo. No balcão, Marcelo cutucou Claude e ambos começaram a rir de mim.

“Que foi?”, eu quis saber.

“Nada, não, bicho. Mas isso aí que você tá pegando vai custar muito mais que essas duas velharias que trouxe”, Marcelo respondeu, com aqueles olhos apertados e o sorriso de Mônica-depois-de-espancar-o-Cebolinha que ele tinha (e ainda deve ter).

“Pô, sério?”, eu disse, decepcionado.

“Muito sério”, ele retrucou.

Depois, foi o Claude quem me explicou, sem me olhar nos olhos, como sempre fazia, que os discos que eu levara não tinham “muita saída”, já que a maioria do público da loja estava sempre atrás de novidades. Situação oposta à dos que eu gostaria de pegar, considerados joias raras no mix da Câmbio Negro.

Pode parecer brincadeira, mas, pelos dois que deixei, saí de lá com um único LP, usado e bem arranhado, de uma banda cujo nome não guardei e que ouvi inteiro uma única vez, dada a ruindade das músicas, pra depois lançá-lo nas teias do esquecimento – nem sei aonde o disco foi parar.

Passados alguns dias, voltei à Câmbio pra procurar alguma coisa bacana. Tive uma daquelas inconfundíveis e desagradáveis sensações, ou melhor, certezas de ter sido passado pra trás: o disco do Ten Years After, que encontrei em lugar de destaque no mostruário, custava pelo menos o equivalente a uns três Clash, uns quatro Ramones e uns cinco Bowies, vendidos juntos.

Não me restou muito a fazer: fui ao balcão e estendi a mão ao Marcelo e depois ao Claude, para cumprimentá-los.

“Vocês vendem discos de um monte de feras, mas são os verdadeiros artistas desse negócio. Parabéns!”, eu disse, sem esconder uma sincera admiração pelos larápios.

Meses depois, vim a conhecer o hoje finado Alexandre, dono de uma lojinha de aparelhos de som usados, na Savassi, e também mercador de discos raros das novas safras do rock alternativo – aliás, um sujeito que era amicíssimo do Marcelo e do Claude. Com ele, vi que meus conhecimentos sobre táticas 171 de vendedores de coisas que a gente gosta estavam bem obsoletos.

Mas isso é assunto pra outro texto.

9 comentários:

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    1. Marcelo tá com uma loja no mix shopping, rua são paulo esquina de augusto de lima.A loja chama-se In Rock.

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  3. Que boa história. E era assim mesmo. Como "point dos roqueiros" a Cambio Negro foi a primeira e reinou até quando a Cogumelo (que era loja de roqueiro burguês) "roubou" esse posto, principalmente depois de se tornar produtora. Trabalhei com o
    Alexandre nos vídeos de rock no ICBEU e no DCE da Federal antes dele montar a lojinha dele na Savassi. Não sabia da morte do Alexandre. Do que ele faleceu?

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  4. Queria saber deles e quem eacreveu estw texto

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  5. Quanta saudade sinto dessa época, saudade que chega a apertar o peito era cliente assíduo da câmbio negro,passava lá quase todos os dias pra ver as novidades, como o tempo passou e restarão as recordações dos lugares das pessoas (muitas infelizmente já partiram)como gostaria de voltar no tempo pra reviver tudo que passou e não cometer os erros do início de nosso percurso que mudaram pra sempre minha vida.

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