quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Na Casa D'Irene

Por Evaldo Magalhães

No decorrer da vida, a gente tem muitos momentos, digamos, especiais, daqueles dos quais nunca se esquece: um beijo, um tapa, um sorriso, um choro, um medo, uma alegria, uma perda, um ganho. Não importa de que tipo, há sempre um pedaço de tempo e/ou espaço que fica guardado lá dentro e, vira e mexe, volta à tona com tudo, nos assombra ou nos deslumbra.


Nesse rol de agulhadas indeléveis n’alma, que traçam a animada ou modorrenta paisagem do quebra-cabeça (aparentemente, uma contradição, pois não?) que somos, não faltam prazeres gastronômicos. E um dos maiores, no meu caso, foi uma determinada torta de galinha, numa determinada noite fria de um determinado julho dos anos 1980. Comi-a quase de joelhos em uma mesinha de calçada, na esquina da Rio Grande do Norte com Getúlio Vargas. Claro, acompanhada de uma cerveja estúpida de tão gostosa.

Lembro disso como se fosse ontem – ou como se houvesse sido sempre, porque não me larga essa lembrança.

Deixei a namorada em casa e, bêbado, irresponsavelmente bêbado, irrespondivelmente bêbado, rumei na charmosa Brasília cor de cocô anêmico e com volante de madeira pra Savassi. Subindo a Bias Fortes de quarta marcha e no gás todo – o carro, que minha irmã não emprestava, mas eu roubava, tinha dupla carburação e, a despeito do barulho infernal, andava muito! – me veio, num estalo, a ideia de dar uma esticada na night. Estalo é só modo de dizer, porque eu sempre esticava as noitadas e não havia nada de original naquela embriagada epifania.

Só que no semáforo da esquina com a Praça da Liberdade, pensei – aí, sim, com ineditismo: “Que fome! Uma tortinha da Casa d’Irene cairia bem. Depois, sigo pra esbórnia: Complexo B, Trincheira, Outro Lado da Moeda, Incapazes do Nirvana, whatever”.

Seria a primeira vez que eu comeria de madrugada e não iria direto pra cama!

Mas esse raciocínio nem me ocorreu.

Bom, devo dizer que eu e Nico Fidenco sempre compartilhamos o amor por aquela casa. O garçom, o imortal Baiano, que servira anos antes meu irmão e, eu suspeitava, também meu pai, meu avô, meu bisa e até um dos botocudos dos quais descendo, recebeu-me, pra variar, com o riso frouxo.

Pelo que me lembro, Baiano gostava de todo mundo, só não o agradavam muito os maconheiros e os hippies. E gente assim era maioria entre a clientela, o que, imagino, deixava o cara ainda mais feliz ao me ver. Cantei pra ele: “A casa d'Irene si canta si ride/C'e gente che viene, c'e gente che va”.

Encabulado, o velho garçom meneou levemente a cabeça pros lados, deixando escapar alegria peculiar que só mesmo os baianos ou os italianos do Nordeste da Calábria devem demonstrar ao ouvir uma canção.

“Vai uma antártica geladinha?”, ele me perguntou, limpando o tampo da mesa com a mão espalmada, tirando restos de frango.

“Vai, sim. E uma tortinha!”, eu disse.

Olha, acho que a torta que ele trouxe tinha acabado de sair do forno. Mas não foi só isso.

Também acho que a cozinheira que trabalhou naquele dia estava especialmente enlevada com alguma coisa: uma notícia boa, um aumentozinho no salário, o nascimento de um sobrinho, um prêmio de loteria, a confirmação da correspondência de um amor. Mas também não foi só isso.

Talvez os frangos que involuntariamente cederam suas coxas, sobrecoxas, asas e peitos pra rechear o acepipe que degustei tivessem, pouco antes da degola, recebido alguma graça dos deuses dos frangos – assim, incrivelmente felizes, nem deram bola pra morte e sucumbiram com as entranhas banhadas em endorfina galinácea. Mas, sei lá, não foi isso.

Na primeira garfada, o que senti foi o de sempre. “É, a torta é boa. Combina com cerveja gelada”, pensei.

A partir da segunda, ah, comecei a revirar os olhos.

Dizer que minhas papilas gustativas eram expectadoras privilegiadas de um festival inigualável de sabores seria meio gay da minha parte. Completar com uma frase do tipo “eu saí de mim ali” seria ainda mais viado. Mas, poxa, deem um tempo! Foi isso mesmo!

Aquela pasta de pedaços generosos e deliciosamente macios de frango, envoltos em um molhinho suculento de tomate com cebola e sei lá mais o quê; a massa úmida, mas paradoxalmente podre (seca), trançada como obra de arte no entorno do recheio; a consistência do conjunto...

Não sou, e jamais fui, especialista em culinária. Mas os passes de mágica que minha mãezinha sempre deu na cozinha me garantiram, na pior das hipóteses, paladar dos mais apurados. Naquela noite fria, eu dizia, bebadamente, como que confirmando o momento especial que guardaria pro resto da vida: “Ô Baiano, minha mãe trabalha aqui agora?”

Depois do último montinho de torta empurrado pelo polegar até o garfo, levado à boca com requintes rituais e mastigado e engolido como se fora um ato de amor, pedi a conta, paguei e nem quis saber dos meus planos.

Fui pra casa, fiz a higiene de sempre, deitei-me e dormi como um anjo.

Mas não sonhei. Talvez porque, naquela noite, minha cota de sonhos estivesse esgotada.

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