Com a calça de couro negro colada às pernas magras e a camisa branca de pirata empapada de suor, Gato Jair entoava os versos do último número do Último Número da noite, já no bis. Uma canção bacana, marcada pelo baixo e a guitarra até certo ponto alegres, o que contrastava com o clima geralmente sombrio das letras. O palco havia sido instalado na rua, bem em frente ao Complexo B, um dos bares mais frequentados por punks, darks e afins de Belo Horizonte, em determinado período dos anos 80.
Eu estava bastante bêbado, mas não a ponto de ficar imune ao desespero que emanava dos movimentos andróginos e cheios de pantomimas do poeta maluco com o microfone.
Gato Jair era o cara!
Empolgadíssimo, quase chorava, deliciando-me com a mistura entorpecente de sons. Conforme definição de um amigo, os acordes e as letras do Último Número eram pra fazer as pessoas inteligentes suspirarem – por inteligentes, talvez ele quisesse dizer depressivas – e, por outro lado, deixar bastante incomodados os pobres de espírito – no geral, ainda segundo ele, quem gostava “de pop e new wave”.
Hipnotizado pelo swing caótico da banda e pelos inimagináveis trejeitos gainsbourg-morrisey-morrisonianos do vocalista, em sua música derradeira, Tina (nome fake, claro) se aproximou de mim.
- Vamos fumar um baseado e depois seguimos pra festa. Você vem? – ela disse, com os lábios de batom negro grudados no lóbulo da minha orelha esquerda.
- Olha, estou aqui curtindo o som desses caras. Essa música é genial! E maconha é coisa de hippie – eu disse, espantando Tina.
Eu estava bastante bêbado, mas não a ponto de ficar imune ao desespero que emanava dos movimentos andróginos e cheios de pantomimas do poeta maluco com o microfone.
Gato Jair era o cara!
Empolgadíssimo, quase chorava, deliciando-me com a mistura entorpecente de sons. Conforme definição de um amigo, os acordes e as letras do Último Número eram pra fazer as pessoas inteligentes suspirarem – por inteligentes, talvez ele quisesse dizer depressivas – e, por outro lado, deixar bastante incomodados os pobres de espírito – no geral, ainda segundo ele, quem gostava “de pop e new wave”.
Hipnotizado pelo swing caótico da banda e pelos inimagináveis trejeitos gainsbourg-morrisey-morrisonianos do vocalista, em sua música derradeira, Tina (nome fake, claro) se aproximou de mim.
- Vamos fumar um baseado e depois seguimos pra festa. Você vem? – ela disse, com os lábios de batom negro grudados no lóbulo da minha orelha esquerda.
- Olha, estou aqui curtindo o som desses caras. Essa música é genial! E maconha é coisa de hippie – eu disse, espantando Tina.
A arte é longa, a vida é breve,
nessa aventura ninguém se atreve
a veeeeeeeeer aléééééém do olhaaaaaaaaaaaaaaaar
nessa aventura ninguém se atreve
a veeeeeeeeer aléééééém do olhaaaaaaaaaaaaaaaar
Entremeados pelo baixo saltitante, os versos ganhavam mais emoção ”sob os auspícios da guitarra sincopada, mas tonitruante” – pra usar palavras do Arthur, um dos críticos musicais mais certeiros e poéticos do mundo – do John Ulhôa.
Dez anos depois, nos anos 90, John faria sucesso em outra banda. Um som pop, de nítidas influências new wave e, embora esse ponto fosse controverso, até com uma certa brejeirice pop permeando as canções. Isso deixaria muitos ex-fãs furiosos, enquanto outros, mais novos, o aplaudiriam – e à mulher, Fernanda – como loucos.
Fato é que, naquela época, todos os outsiders e undergrounds de BH o amavam.
“Se Clapton é Deus, esse cara é o demônio!”, diziam.
Aplaudi ferozmente o Último Número após o acorde final, dando pulos pra olhar, sobre as cabeças da pequena multidão concentrada mais perto do palco, o que parecia ser um ataque epilético do Jair. Apesar da timidez na vida “real”, ao melhor estilo jimorrissoniano ele simulava uma convulsão, estrebuchava-se e rolava pelo chão.
Acompanhada de um pequeno bando de “urubus”, garotos e garotas apelidados assim pela maioria das pessoas por vestir-se sempre com casacos pretos, calçar coturnos desconfortáveis e usar pesadas maquiagens, Tina passou novamente por mim.
- Então, vamos nessa? – ela perguntou.
- Ocá - eu disse, conformado.
****
Do toca-fitas roadstar do Fiat 147 azul-calcinha do Marquinho (o carro e o nome não eram esses, mas que sejam), a voz aveludada de Ian Macculoch e a barulheira infernal de Will Seargent e Pete de Freitas, em Over the wall, esgoelavam pela quinta vez na noite, no caminho do bairro Belvedere, o reduto de mansões da Zona Sul. Eu era sufocado pela excitadíssima Tina no banco de trás, ao lado de dois irmãos que chamarei aqui de Mary Chain Bros., cujos rostos, tampados pelos topetes negros e crespos caídos sobre os narizes enormes, ninguém jamais conseguira ver com detida atenção.
No banco ao lado do de Marquinho, flutuava uma deusa ruiva que eu e praticamente todos os homens que já haviam pousado olhos nela, inclusive gays e um monte de mulheres, éramos a fim de comer. Ela cantarolava com inglês sofrível uma música diferente do Echo and the bunnymen. Todos estavam irritados com a falta de synch, mas ninguém a mandava calar a boca.
Tina estava mais preocupada em lamber a própria marca de batom na minha orelha. Eu, assim como os irmãos Mary Chain, alimentava esperanças de um dia, who knows, transar com aquele monumento ruivo e evitava comentários ofensivos. Marquinho, que sempre a comia e parecia enjoado disso, estava muito louco pra conseguir xingá-la.
- Ocê sabe o endereço da festa, né? – ele me perguntou, após reunir forças, virar-se para passar o baseado a um dos Mary Chain e sacar que teria de berrar pra se sobrepor à música e aos ganidos da ruiva.
- Ocê sabe o endereço? – ele repetiu, bem mais alto.
- Sei. A casa é bem atrás do shopping. Não tem erro. Cê segue essa estrada e em poucos minutos a gente chega – respondi.
Uma luz piscando no céu chamou minha atenção no momento em que olhava pela janela pra me desvencilhar das investidas de Tina na versão “‘tô’ no cio” – o alvo das lambidas agora era meu olho. Tratava-se de um ponto amarelo-avermelhado acima da Serra do Curral, que oscilava tanto em brilho quanto em posições: ziguezagueava, incomodando bastante quem já tivesse assistido, mesmo que com moderado ou quase nulo interesse, meu caso, aulas de física no colégio.
- Putz, olha só aquilo?! Parece um disco voador! – arrisquei.
- Nó, cara, deve ser sim... Um óvni da Varig – comentou um dos Mary Chain, sem sequer dar atenção ao objeto que, estranhamente, crescia no horizonte, como se estivesse se aproximando do carro.
A despeito do desdém do dark narigudo e topetudo e, de resto, de todos os outros ocupantes do Fiat 147, que pareciam não ligar pra luzes estranhas no céu – preferiam se ater a algo como o “grande e inelutável nada”, como costumavam dizer nas usuais sessões de conversa fiada –, continuei com os olhos fixos no objeto.
Alertei a turma três vezes pro fato de que o óvni se aproximava do automóvel, nos dois minutos seguintes. Mas todos insistiam em não dar pelota.
Pelo menos até que o carro reduzisse a velocidade e parasse de funcionar bruscamente, em uma estradinha deserta atrás do shopping. Estávamos a poucos metros da casa da festa, de onde se podia ouvir Charlotte sometimes, do The Cure, entrecortada por um burburinho de conversas fúteis.
- Uai... Ocês acreditam que a porra do carro morreu? – disse Marquinho, que virava a chave compulsivamente e pressionava o acelerador e a embreagem, sem sucesso.
Quando eu me preparava pra iniciar, de maneira triunfal, a frase na qual exporia a tese de que aquilo tinha a ver com a aproximação do estranho objeto visto no céu, uma luz forte e vermelha, quase da cor dos longos cabelos da ruivona, invadiu em flashes contínuos o interior do Fiat 147. Na festa, ninguém escutou, mas, no carro, gritamos de pavor.
****
A viatura da PM, conduzida pelo cabo Barone (vamos chamar o cara assim), companheiro de ronda do sargento Figueira (idem), estava à espreita, atrás de um outdoor, com os tripulantes loucos pra assustar jovens incautos com seus cigarros de maconha de passassem pela estradinha, atrás do shopping. A imagem do carrinho mequetrefe de Marquinho havia sido motivo de gritinhos efusivos dos policiais.
Enlevados e excitadíssimos, eles perseguiram o veículo azul-calcinha insidiosamente, apenas com as luzes da sirene ligadas, quase antevendo o afogamento do motor e a possibilidade de abordar e de dar um baita susto na garotada.
- Aê, vagabundos! Todo mundo pra fora do carro, mãos na cabeça! – disse o cabo Barone, feliz da vida, depois de realizar com certo histrionismo a manobra que fechou o ângulo de saída do Fiat estragado, no acostamento.
- E não tentem se livrar do bagulho. Hoje vai todo mundo em cana, ha, ha! – completou o sargento Figueira, exultante e saltando da viatura de arma em punho, sem saber que um dos Mary Chain já havia jogado o baseado fora.
Tentei argumentar, ainda de dentro do carro, que todos ali éramos trabalhadores, mas os policias não deram conversa. O cabo Barone me aplicou um safanão e me tirou à força do carro, logo depois que a ruiva e Marquinho haviam sido sacados com igual gentileza.
- Cara, você não pode me tratar assim! Tenho meus direitos – eu disse ao homem da Lei, que percebeu, de fato, boa deixa pra soltar uma das pérolas de policial malvado:
- Você tem é o direito de ficar calado, seu bosta! – gritou, emendando a frase com um tapa na minha cabeça.
Os canas fuçaram o carro todo. Cheiraram nossos dedos, soltaram mais frases de intimidação e riram do nosso desespero. Mas, como não encontraram evidências, por sorte, eles nos liberaram.
Eu, os Mary Chain e até Tina empurramos o Fiat pela estrada, pra pegar no tranco. Marquinho ficou ao volante e a ruiva, impassível ao seu lado. O motor voltou a funcionar e, antes de entrar e seguir pra festa, dei uma nova conferida no céu.
A luz que nos acompanhava havia sumido. Com ela, a esperança de que o mundo viesse a ser um lugar menos chato, um dia.
“Nessa aventura ninguém se atreve a ver além do olhar”, eu cantarolei, em falsete.
Evaldo do céu.. eu li.. eu ri... eu gargalhei.. eu arregalei os olhos... eu coloquei a mão na boca.. e no final.. eu gostei foi demais da conta! Escreve mais pra nóis!
ResponderExcluirObs: Ovni da Varig?huahauaua
Camila Fassini