sábado, 30 de outubro de 2010

Festas no Rodrigo: Lâmia, Lâmia, Lâmia

Por Evaldo Magalhães


A luz do sol ricocheteava em nimbus volumosos, misturados como algodões doces no horizonte, e enchia o céu de um vermelho sanguíneo naquele fim de tarde, em Moeda, pertinho de Beagá. Era julho de 1982 e Patrícia, então com 16 anos, estava prestes a experimentar, pela primeira vez, a famosa infusão de cogumelos alucinógenos preparada pelo Marcinho, colega de colégio.

Ele e Rodrigo, que, assim que criassem uma banda chamada Amanita Musicaria, no ano seguinte, convidariam Pat pra ser vocalista, buscavam entrar em contato com entidades místicas cultuadas em tempos ancestrais. Não entendiam direito com o que estavam lidando, só sabiam tratar-se de demônios que habitavam a imaginação de povos antigos e eram conhecidos e temidos por comer gente e beber seus humores.

Era uma brincadeira levada a sério.

E que se tornaria muito mais séria que qualquer brincadeira.


Em um descampado íngreme, postados próximos à fogueira e sob o céu agora quase na cor de sangue coagulado do entardecer, começaram a entoar velhas cantigas húngaras – em um desastroso arremedo da língua original das canções –, que haviam aprendido em uma edição especial da Revista Planeta, comprada em um sebo do Edifício Maleta, dias antes, por Rodrigo.

O chá que circulava entre eles em um copo de plástico verde desbotado fazia um efeito violento e Pat dançava alucinadamente. Ela começou a berrar e a se despir, alheia ao vento noturno gelado que já cortava os flancos da Serra da Moeda, e a fazer movimentos bastante sensuais, embora um pouco atrapalhados, com as mãos, as pernas e a barriga.

Rodrigo e Marcinho a acompanharam, mas com gestos mais masculinos, como se disputassem um campeonato de fisiculturistas: arquejavam e tensionavam os braços, aproximando-os com os punhos cerrados na altura do umbigo, provocando inchaço nas veias do pescoço. Eles brandiam sons guturais e babavam como bestas famintas.

Em êxtase, o trio não parou de se mexer nem quando a fumaça vinda da fogueira de galhos e folhas secas ganhou volume e, conforme Patricia me contou, adquiriu um tom azulado; nem mesmo quando dezenas de vozes, que pareciam ressonar em uma caverna de acústica impecável no fundo do inferno – ela disse – vieram com o vento e abafaram seus gritinhos pseudoxamânicos.

Lâmia, Lâmia, Lâmia.

E a deusa atendeu ao chamamento.

Com o torso atlético, cabelos esvoaçantes, rosto malévolo e um fulgurante corpo de serpente, ela surgiu majestosa, como um gigantesco espectro holográfico por entre a fumaça, pousando as mãos esquálidas, frias e descomunais sobre as cabeças de Rodrigo e Marcinho. O efeito dos fungos alucinógenos fez com que achassem aquilo tão natural quanto ser acariciado por um gênio psicodélico que acaba de vazar de uma lâmpada mágica. Eles sorriram.

“Putz!”, disse Rodrigo.

“Gostosa!”, emendou Marcinho.

“Ela está aqui, gente?”, perguntou Pat, com olhos perdidos, já que não via nada especial, só uma espessa névoa azul.

Lâmia teria a olhado com carinho, parecendo se compadecer da pobre mortal que não podia enxergar toda a sua beleza, o que era um privilégio de homens. Com as mãos ainda postas sobre as cabeças dos dois rapazes, que haviam se calado e assumido um ar mais solene – apesar das línguas pra fora e dos olhares esgazeados, como dois cérberos de temperamento dócil –, passou-lhes as instruções. A comunicação, em húngaro arcaico, mas também em forma de ondas mentais, teria levado poucos segundos.

Em seguida, uma forte ventania levou a fumaça e a deusa pra dentro da fogueira, que se apagou, abafando, num sopro surdo, o som do coro infernal.

Os dois rapazes desmaiaram. Patrícia sentiu um forte mal-estar e caiu de joelhos, chorando.

“Aí eu apaguei também e quando acordamos no meio do mato, no dia seguinte, Rô e Marcinho me disseram que eu deveria me guardar. Não transar com ninguém, sabe?”, disse-me ela, dias depois, durante uma das festas de arromba na casa do Rodrigo, no bairro São Pedro.

“Como assim?”, eu indaguei, saindo de um estado quase hipnótico, depois da história fantástica que havia me contado.

“Tipo... essa deusa, Lâmia, ordenou que eu preserve minha virgindade, que me mantenha pura até que apareça um cara bonitão e meio problemático. E disse ainda que esse cara será o primeiro e único homem que terei e que, dessa forma, nós dois nos tornaremos veículo de uma grande revolução mundial”, ela completou, entusiasmada.

Nesse momento, Rodrigo colocou pra tocar o Exit... Stage Left, do Rush, e alguém gritou que o vinho havia acabado. O disco, que Rô iria rodar pelo menos cinco vezes, sem parar, e o fim da bebida eram a senha pra me despedir e descer a pé do alto do São Pedro até a Savassi.

Muita gente fazia o mesmo e sempre pegávamos o caminho pra casa em grupos. Rodrigo acabava sozinho na mansão, pela qual parecia ter passado um tufão, e, acredito, curtia ressaca no resto do final de semana, sem mover uma palha pra arrumar a bagunça. Na segunda-feira, quando os pais dele voltavam do sítio, provavelmente tomava um esporro daqueles, mas nunca mencionou isso pra nós, no colégio.

Quando pegamos a Major Lopes, pra depois descer a Lavras e chegar à Contorno, perguntei ao Marcinho sobre a história contada pela Pat. Era verdade?

“Que nada, velho. Ela ficou foi muito doida”, ele disse, seguindo a observação de uma risada que, muitos anos depois, eu acharia muito parecida com a do Beavis, da MTV.

Pelo que fiquei sabendo, mais recentemente, Patrícia, que nunca vi ficar com alguém, acabou se casando com um namorado de faculdade. O sujeito, hoje, é um empresário muito bem-sucedido e tem planos de entrar para a política.

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