quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Eram os deuses astronautas?

Por Evaldo Magalhães

A vida é um soluço alto, doído, entre um sono profundo no reino do nada e o cochilo eterno na terra do coisa alguma.
A frase era do português Pereira, o velho, dono de um boteco daqueles com ovos coloridos e potes giratórios de balas no balcão, sempre cheio de bêbados, na esquina, pertinho da casa onde Paulinho passara a infância.

Na época de menino, ele não entendia muito bem as coisas que o Pereira, o velho, e mesmo que o Pereira, o filho, diziam – coisas que pescava quando ia pegar uma tubaína de guaraná na conta da mãe ou comprar maria-mole no bar. Mas por algum motivo achara aquilo profundo, bonito, definitivo, e guardara pro resto da vida, ou do próprio soluço.

E foi na frase dita com frequência pelo Pereira Velho, geralmente quando se deparava com um diálogo filosófico labiríntico entre os habitués do bar, que ele pensou assim que chegou ao quarto do hospital. O quarto onde Viviane, a prima que regulava com ele em idade, lutava pra não sucumbir a um câncer que se havia espalhado e que tirara dela todo o vigor possível numa mulher de 40 e poucos anos.

Hoje, homem feito, ele sabia muito bem o que o dono do bar queria dizer.

Mas Paulinho não deu uma de Pereira Velho.

Não declarou de jeito solene que a vida é uma espécie de espasmo entre um grande nada e um nada enorme ao mirar com os olhos molhados a prima na cama do hospital. Não havia propriamente um debate filosófico ali, no qual fosse necessária uma intromissão intelectual e um encerramento aforístico, com chave de ouro.

Havia Viviane, moribunda e com os sonhos empalidecidos; e havia ele, aparentemente sem nada que pudesse dizer a respeito, mas com muita coisa a sentir, sentindo tudo o que se podia sentir ali.
Paulinho pegou a mão dela, fria, e disse uma frase sua, uma coisa inesperada que lhe ocorreu, e que acabou provocando um sorriso e um diálogo, afinal.

– Vivi, lembra quando a gente era criança e imaginava portais mágicos entre as pilastras da sua casa, brincando de “Eram os deuses astronautas”?

Viviane assentiu com os olhos castanhos claros apertados, rasgos de luz que ela tinha desde pequena, mas que naquele momento insistiam em se fechar por mais que a luz lá de dentro brigasse pra sair. Paulinho continuou:

– Você ainda tem vontade de passar por um desses portais?

Ela cerrou os rasgos de luz, com um esboço de alegria. Ele retomou:

– A gente tinha lido o livro do Erich von Däniken e estava certo de que os incas haviam sido visitados por extraterrestres. Você lembra? Não sei se fui eu ou você quem acrescentou um ingrediente a mais na nossa fantasia: se a gente pensasse com força, muita força mesmo, um tipo de passagem se abriria entre as pilastras da garagem da sua casa. Daí a gente teria que cruzar o portal com confiança e fé, com os olhos fechados, e, se fizesse tudo direitinho, sairia do outro lado, em plena selva, entre pirâmides majestosas e cidades cheias de mistério, bem na época em que os deuses astronautas mandavam nos incas. Você lembra, Vivi?

Os lábios dela, secos e sem cor, se entreabriram, ensaiando felicidade. Paulinho prosseguiu:

– Mas a gente nunca conseguia! Não porque o portal fosse só uma invenção besta de criança, mas porque nunca tínhamos confiança e fé suficientes. E, principalmente, porque nunca tínhamos coragem pra fazer tudo direitinho, pra deixar a vida que a gente levava e surgir de repente no meio de uma selva exótica, pirâmides e deuses astronautas. A gente era bunda mole, né?

Um som eletrônico agudo e contínuo serviu de alarme para que duas enfermeiras entrassem afoitas no quarto. Elas colocaram uma máscara de oxigênio em Viviane e pediram a Paulinho que se retirasse. A mãe, o pai, os irmãos e o marido dela, ao lado da cama, choravam, à espera do médico.

Do corredor, Paulinho observou o desespero dos familiares e a partida de Viviane.
Deu as costas e deixou o local sem dar as condolências aos tios, aos primos e ao marido dela, que, aliás, não se lembrava de já ter visto.

No primeiro andar do hospital, ao passar sob o pórtico da entrada, Paulinho fechou os olhos.

Confiança e fé, ele disse.

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