sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Dachau


Em determinado período da 2ª Guerra, Heirinch Wicker, comandante de Dachau, mandava a guarda feminina do campo de concentração selecionar, entre as prisioneiras, as mulheres com os seios maiores e as bocas mais belas. E por maiores e mais belas, conforme determinação expressa de Wicker, as guardas entendiam os peitos mais alvos, volumosos e pontudos, com bicos mais perfeitos, e as bocas mais vermelhas e carnudas.

As selecionadas, sempre em torno de cinco ou seis, não eram putas alemãs e polonesas da Joy Division. Wicker não queria nada com elas. O grupo era pinçado das prisioneiras normais, mulheres de bem afastadas de seus pais, irmãos, maridos e filhos – todos considerados inimigos do Reich, mas arianos.

Elas eram levadas a um sobrado nas imediações de Dachau, onde tomavam banho de banheira com sais e pétalas de rosas, depois que seus corpos eram devidamente desinfectados, esfregados com grandes buchas embebidas em álcool. Maquiadas com cores fortes, sombras malignas desenhadas nos olhos e batons de sangue, as donas dos mais belos peitos e bocas do campo eram vestidas como ninfas, com panos esvoaçantes. Uma indumentária que, claro, deixava suas portentosas tetas à mostra.

Agrupadas em uma grande sala com lareira, à luz de velas e ao som de um piano tocado wagnerianamente por um homem com a máscara de um dos Armanen – os míticos padres-reis da cultuada nação ário-germânica –, as mulheres eram obrigadas a se locupletar de taças de hidromel, servidas pelas guardas femininas.

Em pouco tempo, entravam em um estado coletivo de alucinação. Passavam a fazer carícias mútuas e a explorar com dedos e línguas as partes íntimas, próprias e das companheiras. Neste momento, Wicker entrava no cômodo, nu, com o pênis ereto, untado com absinto, o que deixaria as mulheres ainda mais alucinadas, tão logo tocassem nele suas bocarras salivantes.

O nazista percebia as mais tímidas e se aproximava. Ordenava que esfregassem os seios no falo que tinham à frente. E elas obedeciam, sem esconder sorrisos perversos. Depois lambiam e engoliam; sugavam-no, sedentas.

Wicker mantinha a ereção por horas. Não sucumbia ao orgasmo graças a uma técnica pagã antiga: pressionava com o dedo indicador, em intervalos curtos, um ponto médio entre o ânus e o escroto. Assim, garantia a todas o que ele considerava um privilégio: saborear seu membro ariano.

Depois de visitar todos os seios e bocas, Wicker mandava que as mulheres se enfileirassem, de quatro e de costas para ele. Penetrava cada uma várias vezes, ora na vagina, ora no ânus; dava estocadas violentas e se divertia com os gritos de prazer e dor.

Passados alguns minutos, ele se deitava no tapete central da sala e mandava que as mulheres se aproximassem para presenciar seu orgasmo e se lambuzar com sua explosão. Empolgadas, mais uma vez elas obedeciam. E bebiam, até a última gota, o sêmen do chefe de Dachau. No dia seguinte, as mulheres, ressacadas, nauseadas, doloridas por fora e por dentro e sem apresentar resistência, eram levadas a um muro na parte de trás do sobrado. E eram fuziladas.      


segunda-feira, 26 de março de 2012

Índio x Cangaceiro


            
            Belo Horizonte, ginásio do Mackenzie, 1980.
            O mundo girava.
            A pancada foi certeira e ele podia sentir o queixo latejando.
            Índio Sapiranga se agarrava às cordas do ringue e gritava alucinadamente sob uma onda ensurdecedora de apupos da plateia. Cangaceiro jazia na lona, quase inconsciente, mais derrotado do que nunca.
            O combinado era que se levantasse, derrubasse o juiz "ladrão" com uma rasteira esperta, pedisse o silêncio e a confidência do público e se aproximasse sorrateiramente, por trás, do oponente, que dirigia bravatas à multidão. Então, agarraria a vasta cabeleira do colega argentino – que faria outros dois lutadores "do bem" naquela noite, mas que agora era o vilão – e o puxaria para baixo com a tradicional simulação de violência, até fazê-lo ajoelhar.
            Ensandecida, a audiência aplaudiria e pediria o golpe mortal. Rápido como Corisco, Cangaceiro subiria na forquilha do ringue e saltaria com uma voadora plástica, triunfal, atingindo impiedosamente o peito do malévolo silvícola, para o encantamento dos fãs.
            Mas ele não conseguiu se erguer.
        Vamo, Osvaldo, levántate! - sussurrou-lhe o juiz, Paco Mosquera, um uruguaio gigante, barrigudo e velho, que nos áureos tempos chegou a interpretar o temido Verdugo.
           – Não... consigo – sussurrou de volta o ofegante Cangaceiro.
            A figura do amigo Mosquera, as luzes brancas e oscilantes sobre o tatame e o corpanzil do Índio Sapiranga, pendurado nas cordas, ganharam formas de vapor e desvaneceram lentamente, ao som agora abafado das vaias das cerca de 200 pessoas que assistiam ao espetáculo.
            Osvaldo? Osvaldo?... Xi, Queiroz, Osvaldo desmayó. Le pegó muy duro  - disse Mosquera, virando-se para o Índio de olhos de sangue.
            Sapiranga, ou o ex-faxineiro de uma escola pública de Lima, no Peru, Chiquito Queiroz, desceu das cordas e se agachou para sentir a respiração do Cangaceiro. Garantiu que não usou força excessiva no golpe, mas que podia ter acertado, sem querer e com a mão aberta, como era a regra, a ponta do queixo do companheiro, num daqueles sopapos que fazem o cérebro balançar e até se desligar.
            - No era mi intención, Mosquera, lo siento – disse, com um bolo seco de culpa atrapalhando as palavras.
            Dois lutadores anões que se apresentariam em seguida, Dunga e Ranzinza, subiram ao ringue e carregaram o Cangaceiro para o vestiário.
            O índio não desperdiçou o momento: ao perceber que o público, extasiado, agora gritava seu nome, pensou nos ensinamentos de Trovão, um dos mais antigos artistas de telecatch do país, segundo o qual a preferência dos assistentes poderia mudar completamente durante a contenda.
            “É a psicologia das massas. Às vezes, a plateia quer justiça; às vezes, quer justiça e sangue; mas, às vezes, quer só sangue, não importa de quem”, dizia El Trovão.
            Sapiranga pulava de um lado a outro, batia no peito como um king kong supremo e se deliciava com a histeria da massa.
            Enquanto comemorava o triunfo sobre o adversário que deveria subjugá-lo naquela luta, a sirene de uma ambulância ecoou pelo ginásio e se sobrepôs à estridência de seus novos e certamente efêmeros admiradores.
            Cangaceiro não resistiu, a caminho do hospital.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Obsessão, um resumo



Ela me tomou mais de dois anos.



Desde aquele dia na praia, em janeiro de 1984, quando a vi pela primeira vez, sozinha, roçando o pé na areia, perto do mar, de tardinha. Nossos olhares se cruzaram e senti um sopro no peito. Um anjo me soprou.

Foi paixão daquelas de foder. Ou de não foder, porque jamais sequer a beijei na boca.

De noite, nós nos vimos de novo, dessa vez num bar à beira-mar. Tínhamos amigos comuns. Éramos a turma de Belo Horizonte.

Conversamos e ela me deu muita bola. Muita mesmo! Fiquei louco, né? Mas nunca havia namorado, até então, e talvez por isso não soubesse levar adiante a conversa até roubar um beijo, por exemplo, de alguém com quem se quisesse passar a vida toda, até ficar velhinho. Eu era muito cru.

Naquelas férias de verão começou minha obsessão por ela. A gente se encontrava na praia, um bando de malucos, e ficava em um trailer de sanduíches bem na areia, tomando cerveja, fumando maconha e ouvindo rock'n'roll.

Ela era loura, linda, pelos louros nas pernas, na barriguinha, nos braços, magrinha, mas muito gostosa. Alucinado, eu ficava caçando oportunidades pra ter conversas privativas com ela.

Num dos papos, pôr do sol, ela me perguntou se eu faria o terceiro científico no ano que se iniciava. Respondi que sim. E ela disse "eu também, que coincidência".  Interpretei o comentário, um tanto óbvio, já que tínhamos a mesma idade, como a comprovação da correspondência dos sentimentos.

Idiota? Provavelmente.

Voltei pra BH no dia do aniversário dela, que seria comemorado com um luau na praia, ao qual obviamente não fui. Em casa, fiquei contando os dias pra que ela chegasse.

Foram dias de paixonite adolescente braba. Ouvia no som do meu quarto sem parar discos do Pink Floyd, do Genesis e do King Crimson, principalmente, que tocavam constantemente no trailer da praia. E pensava nela, e me masturbava com a imagem dela, e chorava pela ausência dela.

Ela finalmente chegou. Soube disso porque o resto da turma, os meus amigos, também chegou e me contou. E um dos meus brothers me apunhalou sem saber, claro: disse que havia ficado com ela no fatídico dia do aniversário. E que também estava apaixonado.

Ela tinha um namorado de muitos anos em BH, que não pudera ir pra praia, e isso era um complicador pra esse meu brother. A loura linda havia dito a ele que não daria pra ficarem juntos porque ela não queria terminar com o tal namorado.

Haha. Ele se ferrou. Mas eu também.

Meu amigo sofreu por um tempo. Pouco tempo. E acabou esquecendo a belezura.

Não tive a mesma sorte. Haha. Ela me tomou mais de dois anos.

Obsessão mesmo. Não há outra palavra. Eu saía à noite à procura dela, depois de passar os dias tendo alucinações com ela. Eu via um casal na gente. Uma vida nova pra ela, pra mim, de mãos dadas, planejando o casamento, uma casa no mato.

Eu a queria não pra conversar sobre "nós" ou algo assim. Eu a queria pra vê-la e cumprimentá-la. E assim, quem sabe, passar subliminarmente a ideia de que estava desesperado de amor.  Mesmo que ela estivesse ao lado do namorado e da turma sorridente à qual eles pertenciam, um pessoal descolado, hippies inteligentes que não frequentavam exatamente os mesmos bares que eu.

Sofri muito. Chorei muito. Dois anos e pouco. Talvez três anos.

Fui me desligando dela aos poucos, dada a impossibilidade do romance, obviamente, e o fato de que outras mulheres surgiram na minha vida e me distraíram.

Mas foram dois anos e pouco, talvez três, de absoluta fidelidade a um sonho. E parte do sonho nunca soube disso.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Rotina




Adolescente feio, desengonçado e desprovido de inteligência notável, perdido em algum canto de Belo Horizonte no início dos 80, não tem e nem pode ter muita esperança no porvir. O sujeito acorda com a mãe jogando água na sua orelha, porque é a única forma de tirá-lo da cama; levanta como um zumbi, daqueles do George Romero; toma café com os olhos praticamente fechados de tanta meleca; apronta-se com o desleixo de um débil mental e sai pra rua como quem caminha pra forca.

Oito quarteirões depois de flutuar sem noção, correndo sério risco de atropelamento, chega à escola onde, embora haja outros adolescentes feios, cheios de espinhas e desprovidos de inteligência destacável, boa parte dos colegas é bem mais cool que ele. Que inspiração, que ar bondoso entrando pelos pulmões e sendo expirado com vigor pra mais um dia produtivo o quê? A única coisa que quer é voltar a dormir. Mas não rola.

Física logo no primeiro horário e, se presta atenção no professor – e precisa fazer isso, porque outra bomba não será tolerada pelos pais –, certamente vai sofrer uma dor de cabeça fodida que se prolongará por todo o dia. Potencializada pelo perfume horrendo da loura baranga que se acha a cópia perfeita da Olivia Newton-John na carteira da frente. E da mistura do odor daquela essência de gosma de boi almiscareiro com o cheiro de benzina que vem do colega Nestor drogado da carteira ao lado.

Tudo pouco promissor.

No recreio, lufada de relativo contentamento, enfim: ele e alguns colegas igualmente derrotados atravessam a rua e um dos caras acende um baseado, pra tornar a manhã menos cruel. Chupa, prende, solta. Risos histéricos de caras e bocas banais. Um olhar semicerrado pro alto, a constatação de que a porra do azul do céu é um troço maravilhoso e misterioso. Um breve momento "ainda tem que rolar muita coisa na minha vida" e a volta à sala, onde o professor de literatura fala sobre a sujeira de um cortiço. Grandes merdas.

No almolço, em casa, batatas e carne gordurosa cozidas e uma medonha mistura de coisas verdes, vermelhas e amarelas, mesmo que ele esteja pensando em fritas crocantes e em um bife pingando sangue e em arroz soltinho e farofa e vinagrete. É foda. Nem tudo na vida é do jeito que a gente quer. Mas a larica é grande. Boca, mastiga, engole.

Acabou o almoço? Fazer o quê? Estudar? Tá de onda, cara? Ouvir Selling England By The Pound, pensar na moreninha magrela com narizinho de Natalie Wood, bater uma punheta rápida e dormir a porra da tarde inteira. Dor de cabeça? Como sempre.

Seis horas. Ave Maria. Toca levantar que a mãe já tá puta com a dormideira. Chuveirada que o calor tá brabo. Tira uma maçã da geladeira e come sem lavar. Vai mastigando como um boi até ficar perto do caroço, aí roi como um ratão do banhado divetindo-se com o crec-crec. Põe o Led na vitrola, alto mesmo, pra incomodar a vizinhança, desobediência civil-adolescente, it's been a long time this is rock'n'roll. Veste roupa preta da noite e sai de casa alerta, um caçador.

Mais um baseado com o cabeludo da Serra, torta da Casa de Irene, cerveja com três amigos que tiveram o dia bem parecido, e pá! A morena Natalie Wood aparece linda, gostosa pra caralho, com o namorado almofadinha no boteco. A cabeça latejante gira, ideias revolvem, a faca no prato vazio da torta brilha.

A adrenalina invade.

O voo, a garganta.

Corta.

Fim.

                

segunda-feira, 7 de março de 2011

Dodô e Osmar

Por Evaldo Magalhães


O olhar desdenhoso e metido a besta do figurão, na foto da coluna social do Estado de Minas, irritou tanto Osmar que ele bolou um plano diabólico, embora despropositado. Dali em diante, poderia dedicar seu tempo útil e inútil a destruir, a aniquilar, a transformar em um quadro dantesco a vida do doutor Anastácio Donizetti Sobrinho, dono de uma siderúrgica na periferia da cidade.

"Eu não conheço e nunca vi esse cara", ele pensou, "mas vale a pena fazer alguma coisa pra tornar meus dias mais prazerosos e os dele, uma merda sem fim", concluiu, enquanto a mãe anunciava que a macarronada e o frango estavam servidos.

Na verdade, aquele desabafo fora, ou parecera ter sido ao próprio Osmar, apenas uma brincadeira, e de muito mau gosto. Uma piada íntima, totalmente sem sentido. Ou uma espécie de passatempo mental, vindo de alguém desesperado na tentativa de amenizar os efeitos devastadores de um domingo sordidamente estéril, rotineiro e ensolarado, na casa da mãe.

À noite, enquanto assistia à televisão ao lado dos filhos e da mulher, Osmar nem mais se lembrava da bravata de horas antes. Pensava era nas contas e mais contas a pagar, no dentista e no cardiologista a marcar e no sonho, sempre enevoado e aparentemente irrealizável, de ficar rico, de comprar uma cobertura com piscina e churrasqueira, um sítio e uma caminhonete importada, à diesel, com ar condicionado e CD player.

Na segunda-feira de manhã, contudo, quando Osmar tomava café e preparava-se para ir ao trabalho, foi como se, de repente, uma lufada congelante de ideias malévolas o atingisse. O gazeteiro compromisso assumido consigo mesmo, no dia anterior, ressurgiu, sério e monstruoso.

"Uma merda sem fim", ele disse, soltando, em seguida, uma risada vincentpriceana, cuspindo migalhas de pão por todos os lados.

"Ih, papai pirou!", comentou Docimar, a filha mais velha.

Osmar chegou ao escritório, como de costume, às 8h. Antes de saber da secretária a agenda e as visitas a fazer no dia – ele era corretor de imóveis e tirava seu sustento de comissões –, tratou de achar no catálogo o telefone e o endereço do Dr. Donizetti Sobrinho.

"Doutor, o caralho! Nem segundo grau esse babaca deve ter", disse, baixinho.

O empresário morava em um elegante bairro da Zona Sul, isso todo mundo sabia, mas tinha sete números de telefone registrados em seu nome, todos na mesma região. Fora os quinze da usina siderúrgica.

Osmar tentou o mais simpático, que podia ou não ser o da casa do homem, sem a mínima ideia do que diria.

Uma voz rouca de mulher atendeu.

"Eu quero falar com o salafrário do Donizetti", ele disse, de um jeito imperativo e ameaçador.

"Olha", a mulher respondeu, ao fim de um longo bocejo, "o filho da puta não mora aqui. Sou uma das infelizes ex-mulheres dele e, se você quer o telefone da casa onde ele está morando, desista, porque o Donizetti mandou tirar da lista. Nem eu tenho o contato".

"Tudo bem, desculpe o incômodo", Osmar despediu-se, um tanto aliviado.

"Ei, não sei quem é você, mas bem-vindo ao clube cada vez mais cheio de pessoas que odeiam aquele balofo. E boa sorte, seja lá o que você estiver pretendendo!", a mulher disse, antes de desligar.

Osmar colocou o telefone no gancho e, transpirando, caiu em si:

"Puta merda, eu devo estar louco!", repreendeu-se. "Acho melhor trabalhar e esquecer essa besteira".

O corretor voltou para casa à noite, tirou a gravata e pegou a cerveja mais gelada do freezer. Ficou ali mesmo na cozinha, recostado na parede, bebericando, enquanto Sandra fritava hambúrgueres para as crianças. Foi quando o vendaval de pensamentos demoníacos assolou-o de novo e ele não conseguiu se conter.

"Tem um cara aí, da alta sociedade, prejudicando muito meu trabalho, meu bem", ele disse casualmente a Sandra, sem saber exatamente por que o fazia.

"É? Como?", ela quis saber, subitamente interessada.

Nos minutos seguintes, Osmar desfiou uma história fantástica, diante da expressão cada vez mais abestalhada da esposa.

Disse que o empresário Donizetti Sobrinho – "Conhece a peça?", perguntou a ela, que balançou a cabeça para os lados – acompanhou-o, dias antes, a um superapartamento de cinco quartos, em um bairro chique da cidade.

O homem, “gordo e fedorento como um porco”, fingira-se interessado no apartamento apenas para dar uma cantada no corretor.

Osmar contou ter reagido com firmeza:

"Falei que eu era um profissional, que estava ali pra trabalhar e que poderíamos continuar conversando, desde que fosse sobre negócios. Disse ainda que, mesmo que fosse viado, jamais toparia um programa com um elefante asqueroso daqueles", relatou a Sandra, boquiaberta.

"Depois disso, o cara passou a ligar pro meu chefe, pedindo minha cabeça, alegando que eu fui muito grosseiro e que não servia pra vender imóveis", prosseguiu.

Sandra perguntou o que o patrão achara de tudo e Osmar carregou nas tintas:

"Você não vai acreditar! Ele falou que mais um deslize meu com o gordo, que inclusive quer ver outro apartamento, e estou na rua!"

Na verdade, o que o corretor tentava era fazer com que não apenas ele, mas toda a família odiasse o tal doutor Donizetti Sobrinho, de quem ninguém naquela casa jamais ouvira falar. Além de conseguir aliados em sua maquiavélica empreitada, teria uma boa desculpa para eventuais excessos que viesse a cometer na execução do plano.

"Você tem que fazer algo a respeito, amor! Vá à polícia, denuncie, isso deve ser assédio sexual, sei lá. Conte a história pros seus amigos, fale com os jornais, bote a boca no mundo", disse Sandra.

"Deixa comigo", ele respondeu, caminhando para a sala de televisão, um sorriso sacana estampado.

Na manhã seguinte, Osmar tornou a ligar para a mulher com quem conversara na segunda-feira. Ele tinha certeza de que Sandra, que deveria ir ao cabeleireiro naquela tarde, contaria a história a duas ou três amigas, que por sua vez relatariam o ocorrido, de forma ainda mais apimentada, a atendentes do salão e a conhecidas, que então falariam com Deus e o resto do mundo sobre a suposta preferência sexual e os métodos de abordagem do doutor Donizetti Sobrinho.

"Escute, dona, preciso lhe perguntar uma coisa: como a senhora ficou casada tanto tempo com um gay?... Não, não se assuste. É que um amigo meu, que é corretor de imóveis, me contou que...", e repetiu o caso para a mulher de voz rouca.

"Meu Deus, tenho de espalhar isso, não perco a oportunidade por nada no mundo", ela agradeceu e desligou.

Quarta-feira, depois do almoço, o corretor estava com os pés sobre a mesa do escritório e palitava os dentes.

Só pensava na bomba H que havia lançado sobre a vida do empresário e dava risadinhas de si mesmo.

A secretária usou o intercomunicador:

"Osmar, tem um tal de doutor Donizetti aqui e... Xi, ele entrou!"

O gordo nem esperou Osmar se levantar. Agarrou o corretor, num abraço lascivo, aplicou-lhe um beijaço de língua, afastou-se um pouco e sussurrou-lhe no ouvido:

"Boas notícias, garoto! Parece que todo o mundo já está sabendo do nosso caso”, disse. "Prometo que, se a gente ficar junto, te dou aquela cobertura, aquele carro, e, se você for bonzinho, até aquele sítio..."

Osmar, pálido, trêmulo, mas como que voltando de um sonho, gemeu:

“Mas... cê quer mesmo que eu me separe da Sandra, Dodô?”

O aviador

Por Evaldo Magalhães

Bruno tinha os cabelos vastos, grisalhos, um rosto de ângulos retos que não deixava dúvidas quanto à sua masculinidade, conjuntos quase simétricos de rugas nos cantos da boca que sugeriam alguns milhares de sorrisos acumulados ao longo das mais de quatro décadas de vida – embora, até por falta de estímulo, ele não fosse muito dado a esse hábito. Tinha também o porte típico de um coroa-jogador-de-peteca-cinco-vezes-por-semana: barriga musculosa e pele cor de jambo.

Aos domingos, no clube, quando não estava na quadra exalando o uisquinho moderado do sábado, jamais dispensava, ao desfilar entre as mesas à beira da piscina, nas quais distribuía saudações aos muitos amigos, o acompanhamento dos óculos de grife de lentes verdes.

Talvez os usasse para passar a impressão, sobretudo às mulheres de meia idade que frequentavam o local, muitas delas casadas, de que poderia muito bem ser um experiente, viajado e instigante piloto de Boeing em férias em Belo Horizonte. E não um não tão bem-sucedido vendedor de automóveis nativo, um estulto filho da capital que jamais havia ido muito além de São Paulo, ao sul, ou da Bahia, ao nordeste. E sempre de carro, já que morria de medo de aviões.

Talvez os usasse apenas para olhar, sem precisar dar satisfações, o que realmente queria ver.

Ele era o tipo que jamais revelava o que sentia ou pensava, particularmente quando isso pudesse colocá-lo em apuros. E o que sentia e pensava, quando mirava as bundas duras por horas e horas de aeróbica ou hidroginástica, ou mesmo as mais flácidas, mas apetitosas, das esposas e amigas dos amigos ou das desconhecidas, estendidas nas imediações da piscina, não merecia mesmo ser revelado; ele só queria fodê-las.

“Eu chupava essa. Olha só... puta que o pariu...”, “Ah, essa aí eu rasgava em duas...”, “Putz, eu me lambuzava naquela...” eram frases que comumente lhe ocorriam, nesses momentos, apesar de nunca pronunciá-las.

E Bruno atingia, vez ou outra, seus objetivos inconfessáveis.

Naquele domingo no clube, conseguiu levar para debaixo de uma das três grandes amendoeiras dos fundos do terreno, perto da pista de atletismo, a amada e aparentemente fidelíssima mulher do Caldeira, colega da agência de automóveis.

Francilene, uma morena alta e vistosa de seios fartos e ideias curtas, que, a despeito dos 48 anos, ostentava um traseiro de dar inveja a muitas meninotas, cedera com facilidade aos encantos do aviador de mentira.

Tudo começou em uma roda de carteado, no bar da piscina das plataformas de mergulho, o mais disputado pelos sócios antigos. Entre uma batida e outra, as do jogo de canastra e as de pêssego e maracujá, das quais Francilene se dava ao luxo de abusar – nos finais de semana ela bebia excessivamente como boa bipolar alcoólatra que era –, Bruno aproveitou para roçar o pé descalço na perna macia, a despeito de algumas manchas de microvarizes, da então apelidada “mulherona do Caldeira”, sua parceira no jogo.

– Você bate pra mim ou eu tenho que bater? – ele cochichou, acreditando que a frase seria sutil o suficiente para plantar nela uma sementinha de tesão.

– Bato com prazer. E engulo tudo! – Francilene respondeu, incisiva, sensual, mordendo os lábios, sem esconder o pilequinho, mas ciente de que Juvenal e Estela, a dupla de idosos oponente, não haviam escutado.

– Então bate agora, bate!

– Tá. Você manda. Eu faço. – ela disse, colocando, literalmente, as cartas na mesa.

Os dois nem esperaram a contagem dos pontos, tarefa que Juvenal, depois de esfregar as mãos, confiante na vitória folgada, se preparava para por em prática. Deixaram a mesa correndo, um para cada lado, simulando aperto para ir ao banheiro ou alguma outra urgência.

O local do encontro fora definido por Bruno pouco antes. Ele apontara para o símbolo de paus da carta três e depois dissera, casualmente, que gostaria de se dedicar mais às corridas na pista emborrachada do clube, para manter a forma. Francilene, que não era muito esperta, entendeu imediatamente o recado, o que deixou em Bruno a sensação de que, ao contrário do que se diz por aí, o álcool pode aguçar a mente, em vez de embotá-la.

Enquanto Caldeira nadava seus dois mil metros habituais, em um estilo classificado como “cachorrinho-doente-livre” pelos falsos amigos, que riam dele e de seu patético exercício, todos os domingos, na piscina maior do clube, Bruno fodia Francilene gloriosamente atrás de uma das amendoeiras, estrategicamente localizada em um dos raros pontos cegos da plana vastidão do clube.

A menos de 100 metros de onde o marido se esforçava para manter a forma, pensando justamente na esposa e na possibilidade de ela querer trocá-lo por alguém mais esbelto, Francilene dava urros de prazer a cada estocada na bunda. Bruno se confundia: não sabia se tampava a boca da mulher ou se concentrava sua atenção integralmente no entra-e-sai. Mas isso não diminuía seu ímpeto.

O gozo foi caudaloso.

Francilene, com as pernas bambas, reuniu forças e deu um passo à frente para desenganchar-se. Lépida para uma mulher de quase 50 anos, virou-se e se agachou para sorver, voraz, as últimas golfadas de Bruno, antes que ele dissesse “você é louca, você é doida” e a erguesse para o imperioso abraço pós-coito.

– Temos que fazer isso mais vezes, meu anjo.

Ele não queria fazer aquilo de novo. Ela era só mais um troféu na sua não tão extensa galeria. Mas a compulsão de dizer coisas assim em momentos como aquele era irrefreável.

– Eu quero muito! Eu te desejo desde a primeira vez que te vi – ela respondeu, docemente, com os olhos brilhando para o “piloto” de cabelos grisalhos e porte atlético que imaginava ter acabado de satisfazer.

– Agora, vai, anda, que o Caldeira deve estar te procurando. Vai, gostosa.

Com ar vencedor, Bruno deu um tapinha na bunda maculada de Francilene, que acabara de abotoar o maiô estampado com rosas, e seguiu em sentido oposto, amarrando a sunga, de volta à piscina dos mergulhos.

Caminhou em direção ao bar com a certeza de que o mundo era um lugar bacana, mesmo que ele não fosse um aviador, como se imaginava ao circular com os óculos escuros de marca. E que as mulheres, afinal, ainda caíam a seus pés, aos 46 anos, graças à estampa de atleta corado e de homem capaz e preocupado com o destino de centenas de passageiros, a cada voo. E que, embora ainda subsistisse o sonho distante de ser rico e, quem sabe, ter filhos, uma boa esposa, uma fazenda gigante de gado em Goiás ou Mato Grosso e, finalmente, um avião que pudesse conduzir com maestria até lá, nos fins de semana, havia boas coisas a desfrutar em sua vidinha por vezes insípida.

- E então? Rola uma petequinha, amigo?

Era Caldeira, que, botando os bofes para fora, ladeava a mesa onde Juvenal e Estela discutiam sobre a pontuação da canastra encerrada minutos antes.

Caldeira, provavelmente, acabara de perguntar aos idosos onde estava sua deusa Francilene e ouvira de um deles que ela, aparentemente, havia ido ao banheiro. O amigo traído se enxugava com uma toalha felpuda e alva como a certeza da fidelidade e, embora cansado, sorria como se tivesse acabado de nadar dois mil metros em um mar de rosas.

- Não. Você não dá conta, Caldeira. Nadou muito hoje. Na sua idade, não é bom facilitar as coisas. Você tá muito caído, meu velho – disse Bruno, que costumava associar os prazeres a pequenas humilhações dirigidas a quem, direta ou indiretamente, os havia proporcionado.

- Pois eu dou no couro, amigão. Garanto que venço você agora. Três a zero, valendo um uísque 30 anos. Topa? – Caldeira reagiu.

– A grana é sua. Vamos.

Bruno não fez corpo mole. Pelo contrário. “Enrabei sua mulher literalmente e, agora, vou foder você”, ele pensava.

A cada saque, exigia de Caldeira mais do que um garotão de 18 anos pudesse dar. Dava tapas na peteca com efeitos inacreditáveis, jogava-a em espaços impossíveis, pulava a alturas inimagináveis para cravá-la no rosto do colega de trabalho, que, ofegante e atordoado pelo empenho absurdo do adversário, não conseguia desviar as cortadas.

Perto de completar o último ponto, Bruno observou que Caldeira arfava mais que o normal, mesmo para um sujeito de 54 anos, barrigudo e bebedor inveterado de uísque. A vermelhidão do rosto dele saltava aos olhos, a 15 metros de distância, e certamente nada tinha a ver com o bronzeado ou com as petecadas que levara.

– Caldeira, você tá legal? – Bruno gritou.

- Eu...

Caldeira caiu com a velocidade de um saco de batatas solto propositalmente, longe do caminhão, por um estivador irritado com a excruciante jornada de trabalho. Produziu um barulho choco, mas audível e de provocar arrepios a quem o escutasse, no cimento pintado de verde – provavelmente advindo da fratura do nariz ou do maxilar.

Duas meninas que acompanhavam o jogo soltaram urros histéricos, antevendo o que se seguiria. Bruno correu em direção ao corpo estatelado de Caldeira e constatou, enquanto se aproximava, que ele não mais arquejava.

- Puta que o pariu! – ele disse, olhando em seguida para os lados e, para aumentar seu desespero, identificando Francilene, em pé, em frente ao bar, transparecendo no rosto um inegável quê de congratulações, de admiração e até de tesão pelo que ele, supostamente de forma dolosa, havia acabado de fazer.

- Francilene!

Ela correu para os dois corpos, o do amante, vigoroso, e o do marido, esparramado no chão.

- Deixa que eu cuido de tudo, tá? – ela sussurrou no ouvido de Bruno. Deu-lhe um beijo molhado e uma inesperada lambida na bochecha, antes de começar a chorar exageradamente e quedar-se sobre o defunto, dirigindo apelos aos céus.

- Por quê? Por que, meu Deus? - ela gritava, os olhos cheios de lágrimas, um deles piscando de leve para o aviador.