segunda-feira, 26 de março de 2012

Índio x Cangaceiro


            
            Belo Horizonte, ginásio do Mackenzie, 1980.
            O mundo girava.
            A pancada foi certeira e ele podia sentir o queixo latejando.
            Índio Sapiranga se agarrava às cordas do ringue e gritava alucinadamente sob uma onda ensurdecedora de apupos da plateia. Cangaceiro jazia na lona, quase inconsciente, mais derrotado do que nunca.
            O combinado era que se levantasse, derrubasse o juiz "ladrão" com uma rasteira esperta, pedisse o silêncio e a confidência do público e se aproximasse sorrateiramente, por trás, do oponente, que dirigia bravatas à multidão. Então, agarraria a vasta cabeleira do colega argentino – que faria outros dois lutadores "do bem" naquela noite, mas que agora era o vilão – e o puxaria para baixo com a tradicional simulação de violência, até fazê-lo ajoelhar.
            Ensandecida, a audiência aplaudiria e pediria o golpe mortal. Rápido como Corisco, Cangaceiro subiria na forquilha do ringue e saltaria com uma voadora plástica, triunfal, atingindo impiedosamente o peito do malévolo silvícola, para o encantamento dos fãs.
            Mas ele não conseguiu se erguer.
        Vamo, Osvaldo, levántate! - sussurrou-lhe o juiz, Paco Mosquera, um uruguaio gigante, barrigudo e velho, que nos áureos tempos chegou a interpretar o temido Verdugo.
           – Não... consigo – sussurrou de volta o ofegante Cangaceiro.
            A figura do amigo Mosquera, as luzes brancas e oscilantes sobre o tatame e o corpanzil do Índio Sapiranga, pendurado nas cordas, ganharam formas de vapor e desvaneceram lentamente, ao som agora abafado das vaias das cerca de 200 pessoas que assistiam ao espetáculo.
            Osvaldo? Osvaldo?... Xi, Queiroz, Osvaldo desmayó. Le pegó muy duro  - disse Mosquera, virando-se para o Índio de olhos de sangue.
            Sapiranga, ou o ex-faxineiro de uma escola pública de Lima, no Peru, Chiquito Queiroz, desceu das cordas e se agachou para sentir a respiração do Cangaceiro. Garantiu que não usou força excessiva no golpe, mas que podia ter acertado, sem querer e com a mão aberta, como era a regra, a ponta do queixo do companheiro, num daqueles sopapos que fazem o cérebro balançar e até se desligar.
            - No era mi intención, Mosquera, lo siento – disse, com um bolo seco de culpa atrapalhando as palavras.
            Dois lutadores anões que se apresentariam em seguida, Dunga e Ranzinza, subiram ao ringue e carregaram o Cangaceiro para o vestiário.
            O índio não desperdiçou o momento: ao perceber que o público, extasiado, agora gritava seu nome, pensou nos ensinamentos de Trovão, um dos mais antigos artistas de telecatch do país, segundo o qual a preferência dos assistentes poderia mudar completamente durante a contenda.
            “É a psicologia das massas. Às vezes, a plateia quer justiça; às vezes, quer justiça e sangue; mas, às vezes, quer só sangue, não importa de quem”, dizia El Trovão.
            Sapiranga pulava de um lado a outro, batia no peito como um king kong supremo e se deliciava com a histeria da massa.
            Enquanto comemorava o triunfo sobre o adversário que deveria subjugá-lo naquela luta, a sirene de uma ambulância ecoou pelo ginásio e se sobrepôs à estridência de seus novos e certamente efêmeros admiradores.
            Cangaceiro não resistiu, a caminho do hospital.