sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Rotina




Adolescente feio, desengonçado e desprovido de inteligência notável, perdido em algum canto de Belo Horizonte no início dos 80, não tem e nem pode ter muita esperança no porvir. O sujeito acorda com a mãe jogando água na sua orelha, porque é a única forma de tirá-lo da cama; levanta como um zumbi, daqueles do George Romero; toma café com os olhos praticamente fechados de tanta meleca; apronta-se com o desleixo de um débil mental e sai pra rua como quem caminha pra forca.

Oito quarteirões depois de flutuar sem noção, correndo sério risco de atropelamento, chega à escola onde, embora haja outros adolescentes feios, cheios de espinhas e desprovidos de inteligência destacável, boa parte dos colegas é bem mais cool que ele. Que inspiração, que ar bondoso entrando pelos pulmões e sendo expirado com vigor pra mais um dia produtivo o quê? A única coisa que quer é voltar a dormir. Mas não rola.

Física logo no primeiro horário e, se presta atenção no professor – e precisa fazer isso, porque outra bomba não será tolerada pelos pais –, certamente vai sofrer uma dor de cabeça fodida que se prolongará por todo o dia. Potencializada pelo perfume horrendo da loura baranga que se acha a cópia perfeita da Olivia Newton-John na carteira da frente. E da mistura do odor daquela essência de gosma de boi almiscareiro com o cheiro de benzina que vem do colega Nestor drogado da carteira ao lado.

Tudo pouco promissor.

No recreio, lufada de relativo contentamento, enfim: ele e alguns colegas igualmente derrotados atravessam a rua e um dos caras acende um baseado, pra tornar a manhã menos cruel. Chupa, prende, solta. Risos histéricos de caras e bocas banais. Um olhar semicerrado pro alto, a constatação de que a porra do azul do céu é um troço maravilhoso e misterioso. Um breve momento "ainda tem que rolar muita coisa na minha vida" e a volta à sala, onde o professor de literatura fala sobre a sujeira de um cortiço. Grandes merdas.

No almolço, em casa, batatas e carne gordurosa cozidas e uma medonha mistura de coisas verdes, vermelhas e amarelas, mesmo que ele esteja pensando em fritas crocantes e em um bife pingando sangue e em arroz soltinho e farofa e vinagrete. É foda. Nem tudo na vida é do jeito que a gente quer. Mas a larica é grande. Boca, mastiga, engole.

Acabou o almoço? Fazer o quê? Estudar? Tá de onda, cara? Ouvir Selling England By The Pound, pensar na moreninha magrela com narizinho de Natalie Wood, bater uma punheta rápida e dormir a porra da tarde inteira. Dor de cabeça? Como sempre.

Seis horas. Ave Maria. Toca levantar que a mãe já tá puta com a dormideira. Chuveirada que o calor tá brabo. Tira uma maçã da geladeira e come sem lavar. Vai mastigando como um boi até ficar perto do caroço, aí roi como um ratão do banhado divetindo-se com o crec-crec. Põe o Led na vitrola, alto mesmo, pra incomodar a vizinhança, desobediência civil-adolescente, it's been a long time this is rock'n'roll. Veste roupa preta da noite e sai de casa alerta, um caçador.

Mais um baseado com o cabeludo da Serra, torta da Casa de Irene, cerveja com três amigos que tiveram o dia bem parecido, e pá! A morena Natalie Wood aparece linda, gostosa pra caralho, com o namorado almofadinha no boteco. A cabeça latejante gira, ideias revolvem, a faca no prato vazio da torta brilha.

A adrenalina invade.

O voo, a garganta.

Corta.

Fim.