segunda-feira, 7 de março de 2011

Dodô e Osmar

Por Evaldo Magalhães


O olhar desdenhoso e metido a besta do figurão, na foto da coluna social do Estado de Minas, irritou tanto Osmar que ele bolou um plano diabólico, embora despropositado. Dali em diante, poderia dedicar seu tempo útil e inútil a destruir, a aniquilar, a transformar em um quadro dantesco a vida do doutor Anastácio Donizetti Sobrinho, dono de uma siderúrgica na periferia da cidade.

"Eu não conheço e nunca vi esse cara", ele pensou, "mas vale a pena fazer alguma coisa pra tornar meus dias mais prazerosos e os dele, uma merda sem fim", concluiu, enquanto a mãe anunciava que a macarronada e o frango estavam servidos.

Na verdade, aquele desabafo fora, ou parecera ter sido ao próprio Osmar, apenas uma brincadeira, e de muito mau gosto. Uma piada íntima, totalmente sem sentido. Ou uma espécie de passatempo mental, vindo de alguém desesperado na tentativa de amenizar os efeitos devastadores de um domingo sordidamente estéril, rotineiro e ensolarado, na casa da mãe.

À noite, enquanto assistia à televisão ao lado dos filhos e da mulher, Osmar nem mais se lembrava da bravata de horas antes. Pensava era nas contas e mais contas a pagar, no dentista e no cardiologista a marcar e no sonho, sempre enevoado e aparentemente irrealizável, de ficar rico, de comprar uma cobertura com piscina e churrasqueira, um sítio e uma caminhonete importada, à diesel, com ar condicionado e CD player.

Na segunda-feira de manhã, contudo, quando Osmar tomava café e preparava-se para ir ao trabalho, foi como se, de repente, uma lufada congelante de ideias malévolas o atingisse. O gazeteiro compromisso assumido consigo mesmo, no dia anterior, ressurgiu, sério e monstruoso.

"Uma merda sem fim", ele disse, soltando, em seguida, uma risada vincentpriceana, cuspindo migalhas de pão por todos os lados.

"Ih, papai pirou!", comentou Docimar, a filha mais velha.

Osmar chegou ao escritório, como de costume, às 8h. Antes de saber da secretária a agenda e as visitas a fazer no dia – ele era corretor de imóveis e tirava seu sustento de comissões –, tratou de achar no catálogo o telefone e o endereço do Dr. Donizetti Sobrinho.

"Doutor, o caralho! Nem segundo grau esse babaca deve ter", disse, baixinho.

O empresário morava em um elegante bairro da Zona Sul, isso todo mundo sabia, mas tinha sete números de telefone registrados em seu nome, todos na mesma região. Fora os quinze da usina siderúrgica.

Osmar tentou o mais simpático, que podia ou não ser o da casa do homem, sem a mínima ideia do que diria.

Uma voz rouca de mulher atendeu.

"Eu quero falar com o salafrário do Donizetti", ele disse, de um jeito imperativo e ameaçador.

"Olha", a mulher respondeu, ao fim de um longo bocejo, "o filho da puta não mora aqui. Sou uma das infelizes ex-mulheres dele e, se você quer o telefone da casa onde ele está morando, desista, porque o Donizetti mandou tirar da lista. Nem eu tenho o contato".

"Tudo bem, desculpe o incômodo", Osmar despediu-se, um tanto aliviado.

"Ei, não sei quem é você, mas bem-vindo ao clube cada vez mais cheio de pessoas que odeiam aquele balofo. E boa sorte, seja lá o que você estiver pretendendo!", a mulher disse, antes de desligar.

Osmar colocou o telefone no gancho e, transpirando, caiu em si:

"Puta merda, eu devo estar louco!", repreendeu-se. "Acho melhor trabalhar e esquecer essa besteira".

O corretor voltou para casa à noite, tirou a gravata e pegou a cerveja mais gelada do freezer. Ficou ali mesmo na cozinha, recostado na parede, bebericando, enquanto Sandra fritava hambúrgueres para as crianças. Foi quando o vendaval de pensamentos demoníacos assolou-o de novo e ele não conseguiu se conter.

"Tem um cara aí, da alta sociedade, prejudicando muito meu trabalho, meu bem", ele disse casualmente a Sandra, sem saber exatamente por que o fazia.

"É? Como?", ela quis saber, subitamente interessada.

Nos minutos seguintes, Osmar desfiou uma história fantástica, diante da expressão cada vez mais abestalhada da esposa.

Disse que o empresário Donizetti Sobrinho – "Conhece a peça?", perguntou a ela, que balançou a cabeça para os lados – acompanhou-o, dias antes, a um superapartamento de cinco quartos, em um bairro chique da cidade.

O homem, “gordo e fedorento como um porco”, fingira-se interessado no apartamento apenas para dar uma cantada no corretor.

Osmar contou ter reagido com firmeza:

"Falei que eu era um profissional, que estava ali pra trabalhar e que poderíamos continuar conversando, desde que fosse sobre negócios. Disse ainda que, mesmo que fosse viado, jamais toparia um programa com um elefante asqueroso daqueles", relatou a Sandra, boquiaberta.

"Depois disso, o cara passou a ligar pro meu chefe, pedindo minha cabeça, alegando que eu fui muito grosseiro e que não servia pra vender imóveis", prosseguiu.

Sandra perguntou o que o patrão achara de tudo e Osmar carregou nas tintas:

"Você não vai acreditar! Ele falou que mais um deslize meu com o gordo, que inclusive quer ver outro apartamento, e estou na rua!"

Na verdade, o que o corretor tentava era fazer com que não apenas ele, mas toda a família odiasse o tal doutor Donizetti Sobrinho, de quem ninguém naquela casa jamais ouvira falar. Além de conseguir aliados em sua maquiavélica empreitada, teria uma boa desculpa para eventuais excessos que viesse a cometer na execução do plano.

"Você tem que fazer algo a respeito, amor! Vá à polícia, denuncie, isso deve ser assédio sexual, sei lá. Conte a história pros seus amigos, fale com os jornais, bote a boca no mundo", disse Sandra.

"Deixa comigo", ele respondeu, caminhando para a sala de televisão, um sorriso sacana estampado.

Na manhã seguinte, Osmar tornou a ligar para a mulher com quem conversara na segunda-feira. Ele tinha certeza de que Sandra, que deveria ir ao cabeleireiro naquela tarde, contaria a história a duas ou três amigas, que por sua vez relatariam o ocorrido, de forma ainda mais apimentada, a atendentes do salão e a conhecidas, que então falariam com Deus e o resto do mundo sobre a suposta preferência sexual e os métodos de abordagem do doutor Donizetti Sobrinho.

"Escute, dona, preciso lhe perguntar uma coisa: como a senhora ficou casada tanto tempo com um gay?... Não, não se assuste. É que um amigo meu, que é corretor de imóveis, me contou que...", e repetiu o caso para a mulher de voz rouca.

"Meu Deus, tenho de espalhar isso, não perco a oportunidade por nada no mundo", ela agradeceu e desligou.

Quarta-feira, depois do almoço, o corretor estava com os pés sobre a mesa do escritório e palitava os dentes.

Só pensava na bomba H que havia lançado sobre a vida do empresário e dava risadinhas de si mesmo.

A secretária usou o intercomunicador:

"Osmar, tem um tal de doutor Donizetti aqui e... Xi, ele entrou!"

O gordo nem esperou Osmar se levantar. Agarrou o corretor, num abraço lascivo, aplicou-lhe um beijaço de língua, afastou-se um pouco e sussurrou-lhe no ouvido:

"Boas notícias, garoto! Parece que todo o mundo já está sabendo do nosso caso”, disse. "Prometo que, se a gente ficar junto, te dou aquela cobertura, aquele carro, e, se você for bonzinho, até aquele sítio..."

Osmar, pálido, trêmulo, mas como que voltando de um sonho, gemeu:

“Mas... cê quer mesmo que eu me separe da Sandra, Dodô?”

O aviador

Por Evaldo Magalhães

Bruno tinha os cabelos vastos, grisalhos, um rosto de ângulos retos que não deixava dúvidas quanto à sua masculinidade, conjuntos quase simétricos de rugas nos cantos da boca que sugeriam alguns milhares de sorrisos acumulados ao longo das mais de quatro décadas de vida – embora, até por falta de estímulo, ele não fosse muito dado a esse hábito. Tinha também o porte típico de um coroa-jogador-de-peteca-cinco-vezes-por-semana: barriga musculosa e pele cor de jambo.

Aos domingos, no clube, quando não estava na quadra exalando o uisquinho moderado do sábado, jamais dispensava, ao desfilar entre as mesas à beira da piscina, nas quais distribuía saudações aos muitos amigos, o acompanhamento dos óculos de grife de lentes verdes.

Talvez os usasse para passar a impressão, sobretudo às mulheres de meia idade que frequentavam o local, muitas delas casadas, de que poderia muito bem ser um experiente, viajado e instigante piloto de Boeing em férias em Belo Horizonte. E não um não tão bem-sucedido vendedor de automóveis nativo, um estulto filho da capital que jamais havia ido muito além de São Paulo, ao sul, ou da Bahia, ao nordeste. E sempre de carro, já que morria de medo de aviões.

Talvez os usasse apenas para olhar, sem precisar dar satisfações, o que realmente queria ver.

Ele era o tipo que jamais revelava o que sentia ou pensava, particularmente quando isso pudesse colocá-lo em apuros. E o que sentia e pensava, quando mirava as bundas duras por horas e horas de aeróbica ou hidroginástica, ou mesmo as mais flácidas, mas apetitosas, das esposas e amigas dos amigos ou das desconhecidas, estendidas nas imediações da piscina, não merecia mesmo ser revelado; ele só queria fodê-las.

“Eu chupava essa. Olha só... puta que o pariu...”, “Ah, essa aí eu rasgava em duas...”, “Putz, eu me lambuzava naquela...” eram frases que comumente lhe ocorriam, nesses momentos, apesar de nunca pronunciá-las.

E Bruno atingia, vez ou outra, seus objetivos inconfessáveis.

Naquele domingo no clube, conseguiu levar para debaixo de uma das três grandes amendoeiras dos fundos do terreno, perto da pista de atletismo, a amada e aparentemente fidelíssima mulher do Caldeira, colega da agência de automóveis.

Francilene, uma morena alta e vistosa de seios fartos e ideias curtas, que, a despeito dos 48 anos, ostentava um traseiro de dar inveja a muitas meninotas, cedera com facilidade aos encantos do aviador de mentira.

Tudo começou em uma roda de carteado, no bar da piscina das plataformas de mergulho, o mais disputado pelos sócios antigos. Entre uma batida e outra, as do jogo de canastra e as de pêssego e maracujá, das quais Francilene se dava ao luxo de abusar – nos finais de semana ela bebia excessivamente como boa bipolar alcoólatra que era –, Bruno aproveitou para roçar o pé descalço na perna macia, a despeito de algumas manchas de microvarizes, da então apelidada “mulherona do Caldeira”, sua parceira no jogo.

– Você bate pra mim ou eu tenho que bater? – ele cochichou, acreditando que a frase seria sutil o suficiente para plantar nela uma sementinha de tesão.

– Bato com prazer. E engulo tudo! – Francilene respondeu, incisiva, sensual, mordendo os lábios, sem esconder o pilequinho, mas ciente de que Juvenal e Estela, a dupla de idosos oponente, não haviam escutado.

– Então bate agora, bate!

– Tá. Você manda. Eu faço. – ela disse, colocando, literalmente, as cartas na mesa.

Os dois nem esperaram a contagem dos pontos, tarefa que Juvenal, depois de esfregar as mãos, confiante na vitória folgada, se preparava para por em prática. Deixaram a mesa correndo, um para cada lado, simulando aperto para ir ao banheiro ou alguma outra urgência.

O local do encontro fora definido por Bruno pouco antes. Ele apontara para o símbolo de paus da carta três e depois dissera, casualmente, que gostaria de se dedicar mais às corridas na pista emborrachada do clube, para manter a forma. Francilene, que não era muito esperta, entendeu imediatamente o recado, o que deixou em Bruno a sensação de que, ao contrário do que se diz por aí, o álcool pode aguçar a mente, em vez de embotá-la.

Enquanto Caldeira nadava seus dois mil metros habituais, em um estilo classificado como “cachorrinho-doente-livre” pelos falsos amigos, que riam dele e de seu patético exercício, todos os domingos, na piscina maior do clube, Bruno fodia Francilene gloriosamente atrás de uma das amendoeiras, estrategicamente localizada em um dos raros pontos cegos da plana vastidão do clube.

A menos de 100 metros de onde o marido se esforçava para manter a forma, pensando justamente na esposa e na possibilidade de ela querer trocá-lo por alguém mais esbelto, Francilene dava urros de prazer a cada estocada na bunda. Bruno se confundia: não sabia se tampava a boca da mulher ou se concentrava sua atenção integralmente no entra-e-sai. Mas isso não diminuía seu ímpeto.

O gozo foi caudaloso.

Francilene, com as pernas bambas, reuniu forças e deu um passo à frente para desenganchar-se. Lépida para uma mulher de quase 50 anos, virou-se e se agachou para sorver, voraz, as últimas golfadas de Bruno, antes que ele dissesse “você é louca, você é doida” e a erguesse para o imperioso abraço pós-coito.

– Temos que fazer isso mais vezes, meu anjo.

Ele não queria fazer aquilo de novo. Ela era só mais um troféu na sua não tão extensa galeria. Mas a compulsão de dizer coisas assim em momentos como aquele era irrefreável.

– Eu quero muito! Eu te desejo desde a primeira vez que te vi – ela respondeu, docemente, com os olhos brilhando para o “piloto” de cabelos grisalhos e porte atlético que imaginava ter acabado de satisfazer.

– Agora, vai, anda, que o Caldeira deve estar te procurando. Vai, gostosa.

Com ar vencedor, Bruno deu um tapinha na bunda maculada de Francilene, que acabara de abotoar o maiô estampado com rosas, e seguiu em sentido oposto, amarrando a sunga, de volta à piscina dos mergulhos.

Caminhou em direção ao bar com a certeza de que o mundo era um lugar bacana, mesmo que ele não fosse um aviador, como se imaginava ao circular com os óculos escuros de marca. E que as mulheres, afinal, ainda caíam a seus pés, aos 46 anos, graças à estampa de atleta corado e de homem capaz e preocupado com o destino de centenas de passageiros, a cada voo. E que, embora ainda subsistisse o sonho distante de ser rico e, quem sabe, ter filhos, uma boa esposa, uma fazenda gigante de gado em Goiás ou Mato Grosso e, finalmente, um avião que pudesse conduzir com maestria até lá, nos fins de semana, havia boas coisas a desfrutar em sua vidinha por vezes insípida.

- E então? Rola uma petequinha, amigo?

Era Caldeira, que, botando os bofes para fora, ladeava a mesa onde Juvenal e Estela discutiam sobre a pontuação da canastra encerrada minutos antes.

Caldeira, provavelmente, acabara de perguntar aos idosos onde estava sua deusa Francilene e ouvira de um deles que ela, aparentemente, havia ido ao banheiro. O amigo traído se enxugava com uma toalha felpuda e alva como a certeza da fidelidade e, embora cansado, sorria como se tivesse acabado de nadar dois mil metros em um mar de rosas.

- Não. Você não dá conta, Caldeira. Nadou muito hoje. Na sua idade, não é bom facilitar as coisas. Você tá muito caído, meu velho – disse Bruno, que costumava associar os prazeres a pequenas humilhações dirigidas a quem, direta ou indiretamente, os havia proporcionado.

- Pois eu dou no couro, amigão. Garanto que venço você agora. Três a zero, valendo um uísque 30 anos. Topa? – Caldeira reagiu.

– A grana é sua. Vamos.

Bruno não fez corpo mole. Pelo contrário. “Enrabei sua mulher literalmente e, agora, vou foder você”, ele pensava.

A cada saque, exigia de Caldeira mais do que um garotão de 18 anos pudesse dar. Dava tapas na peteca com efeitos inacreditáveis, jogava-a em espaços impossíveis, pulava a alturas inimagináveis para cravá-la no rosto do colega de trabalho, que, ofegante e atordoado pelo empenho absurdo do adversário, não conseguia desviar as cortadas.

Perto de completar o último ponto, Bruno observou que Caldeira arfava mais que o normal, mesmo para um sujeito de 54 anos, barrigudo e bebedor inveterado de uísque. A vermelhidão do rosto dele saltava aos olhos, a 15 metros de distância, e certamente nada tinha a ver com o bronzeado ou com as petecadas que levara.

– Caldeira, você tá legal? – Bruno gritou.

- Eu...

Caldeira caiu com a velocidade de um saco de batatas solto propositalmente, longe do caminhão, por um estivador irritado com a excruciante jornada de trabalho. Produziu um barulho choco, mas audível e de provocar arrepios a quem o escutasse, no cimento pintado de verde – provavelmente advindo da fratura do nariz ou do maxilar.

Duas meninas que acompanhavam o jogo soltaram urros histéricos, antevendo o que se seguiria. Bruno correu em direção ao corpo estatelado de Caldeira e constatou, enquanto se aproximava, que ele não mais arquejava.

- Puta que o pariu! – ele disse, olhando em seguida para os lados e, para aumentar seu desespero, identificando Francilene, em pé, em frente ao bar, transparecendo no rosto um inegável quê de congratulações, de admiração e até de tesão pelo que ele, supostamente de forma dolosa, havia acabado de fazer.

- Francilene!

Ela correu para os dois corpos, o do amante, vigoroso, e o do marido, esparramado no chão.

- Deixa que eu cuido de tudo, tá? – ela sussurrou no ouvido de Bruno. Deu-lhe um beijo molhado e uma inesperada lambida na bochecha, antes de começar a chorar exageradamente e quedar-se sobre o defunto, dirigindo apelos aos céus.

- Por quê? Por que, meu Deus? - ela gritava, os olhos cheios de lágrimas, um deles piscando de leve para o aviador.

O Banho - 1994

Por Evaldo Magalhães


Adroaldo tomava banho quando o telefone tocou. Ficou exaltado, como sempre acontecia, ao ouvir o tilintar do aparelho. "Ninguém vai atender essa droga?", pensou. Todo ensaboado, abriu a porta do box e esticou-se pra pegar a toalha, que, pra variar, não estava onde deveria. "Maria, Ana, atendam o telefone pra mim!"

Que diabos a mulher e a filha mais velha estariam fazendo que não se dignavam a atender a porra do telefone?

Não teve jeito. Molhado e com frio, Adroaldo saiu do banheiro dirigindo imprecações aos "inúteis" da casa quando deu-se conta de que estava sozinho. "Será que a Maria saiu com as meninas sem me dizer nada?", perguntou-se, a caminho do escritório.

O telefone esgoelava e, com o mesmo humor que deixara o chuveiro, ele finalmente o atendeu.

"Puuuuiiiiii, priiiiiiii, pruiiiii".

Era aquele inconfundível e detestável linguajar de fax, ansioso por obter a resposta de outro. Um aparelho metido à besta comunicando-se, ou desejando fazê-lo, com um parente.

Adroaldo soltou os usuais palavrões contra o interlocutor eletrônico – ele achava um absurdo que as pessoas que lidavam com faxes não se preocupassem em saber, antes de programar as máquinas, se haveria alguém de carne e osso do outro lado da linha para dizer se podia ou queria receber o que quer que fosse. Mas, como sempre, engoliu a raiva e fez o que a máquina pedia.

Ligou o computador, abriu o aplicativo de fax e sentou-se para, pela enésima vez, assistir àquela inexplicável, quase mágica operação. Como é que podia acontecer? Um monte de sinaizinhos sonoros, acumulados em um ruído estridente, aparentemente sem lógica ou significado, transformar-se em letras, frases, palavras, desenhos – e fotos, o que era mais assustador.

"Pixchhhhhhhhhhhhhhhh".

Adroaldo esperou o fim da transmissão e voltou a admirar-se com a peculiar despedida das duas máquinas. Levou o cursor do mouse para o comando "View", clicou (outra coisa impressionante, sem dúvida!) e esperou que a mensagem recém-chegada aparecesse na tela à sua frente.

"Sr. Adroaldo Teixeira Matos, filho de Dona Dalva e Seu Licurgo, comunicamos seu passamento. O senhor teve um piripaque (mais precisamente, um infarto agudo e fulminante do miocárdio), enquanto tomava banho. Calma! Não entre em pânico ou deixe temor e dúvidas invadirem seu ‘coração’, pois tal desespero só dificultará uma entrada sem percalços no que, na falta de descrição melhor, chamamos de outra dimensão. O senhor ficará bem! Aguarde novo contato, desta vez pessoal, de um de nossos emissários. Obrigado, fique em paz e lembre-se: quando a montanha acaba, devemos continuar subindo..."

Adroaldo deu uma gargalhada. Quem poderia ter tramado uma brincadeira daquelas? "Maria, Maria, vem ver o fax que eu recebi!", gritou, esquecendo-se que a mulher e as filhas não estavam em casa.

Ou estavam?

Ele ouviu vozes e percebeu uma grande agitação. Pelado e ainda com frio, tampou o pinto com as mãos e foi ver o que acontecia.

De trás da porta da sala, espreitou Maria, sentada no sofá. Ela chorava copiosamente, enquanto os irmãos e cunhados tentavam confortá-la.

"Que tá acontecendo, Maria?", ele berrou, com a cabeça para fora do esconderijo. "Um cara tão forte e tão novo...", comentava o Carlos Alexandre, marido da Clara.

"Foi pá e pimba, não deu tempo nem de levar pro hospital", emendou o Rodrigo, vizinho do 703.

Adroaldo entendeu tudo e voltou a soltar os bofes:

"Porra, para com essa choradeira, gente, olha eu aqui!", disse, chutando o ar e pulando pela sala, sem vergonha de estar pelado, na esperança de que notassem não só sua presença, mas também sua vitalidade.

"Ele me devia uma bolada, mas agora, me diga, com que cara eu vou cobrar da viúva?", sussurrava em um canto o Clésio, colega de Adroaldo dos tempos de faculdade e, por infeliz acaso, também morador do prédio.

"Dá um tempo, deixa passar a missa de sétimo dia e fala com a Maria", ajudou-lhe o Dr. Pedreira, o advogado do 701.

Àquela altura, Adroaldo estava desesperado mesmo, sentindo palpitações e tonteiras, embora soubesse, no âmago, que tudo era fricote (afinal, se aquele pesadelo fosse realidade, não tinha mais coração, pressão sanguínea ou sistema nervoso que corroborassem os sintomas histéricos)...

Renato parou de escrever a historinha e esticou-se na cadeira. Era tarde. Érika e as meninas dormiam e o silêncio seria completo, não fosse o roncar do computador. Desligou a máquina e foi tomar banho, pra dormir relaxado. No chuveiro, assoviava e ensaboava-se quando sentiu uma forte dor no peito. O telefone tocou...

sexta-feira, 4 de março de 2011

MIF

Por Evaldo Magalhães

O universo estava prestes a entrar na Idade da Reversão, período que duraria os mesmos bilhões de anos até aquele momento e o faria reduzir-se, aos poucos, a um minúsculo ponto de singularidade, feito de matéria hiperconcentrada e perdido no Vazio (embora não houvesse alguém para encontrá-lo). Dali em diante, era impossível prever quanto tempo levaria até que, mais uma vez, houvesse o sopro, o clic na chave do reator invisível. Outra gigantesca explosão ecoaria pelo Nada, dando início à enésima volta no ciclo intérminável dos acontecimentos – àquele caos motocontínuo de luzes, gases, matéria escura e poeira cósmica que iria se organizando, com o passar do recém-criado tempo, em galáxias, estrelas, planetas e seres vivos, inteligentes e/ou estúpidos. Tudo isso tentando, em diferentes níveis de complexidade e com as mais diversas estratégias, afastar-se a uma distância segura do indefectível Verbo. E então, frustrada ao final da correria, a família universal, como em incontáveis ocasiões, sucumbiria num único instante ao derradeiro e repetido colapso. E assistiria ativamente à contração de seu lar, revivendo ao contrário a enganosa escapada pelo espaço-tempo.


Dominus, o andróide, olhava fixamente o cronômetro quasárico no laboratório central de Zelgrub, em uma das milhares de câmaras intraterrenas do planeta, a leste das escarpas de Calixus. Ele sentia no peito algo bem próximo à Angústia – doença psicofísica que lhe fora relatada inúmeras vezes por humanoides de diversos planetas, e cujo sintoma mais comum era "um enorme bolo de vazio no plexo solar". Era estranho o sentimento de que todos os seres "superiores" à base de carbono sintético ou verdadeiro, ambos dotados de pensamento (e os últimos capazes de criar vidas artificiais como a sua, a partir da prática da matemática combinatória), estivessem ausentes naquela hora. Todos mortos. "Solidão", pensava Dominus, enquanto ajustava obsessiva e inutilmente controles no painel à sua frente. "Solidão com uma boa dose de medo", balbuciou, conclusivo.


Na superfície do globo, contudo, havia uma contradição fundamental ao raciocínio do androide. Em uma tenda de fibra de vidro reluzente na quietude desértica, sob os raios de Cintila, a estrela do sistema G-232, abrigava-se um homem; não um calixusiano, mas um terráqueo. Bêbado por doses e mais doses de cartúnia, com olhos enfadados passeando eletricamente pelos cantos, como que à procura de mosquitos inexistentes, Malt Stuponic soltava um filete de saliva pelo canto da boca, enquanto pronunciava, com dificuldade, palavras ininteligíveis até para si mesmo. "Bltassnersdtst", era o que se podia entender. Um som agudo e sincopado vinha do relógio em seu pulso. Era como uma marcha fúnebre, eletrônica e minimalista, marcando os segundos finais do universo como o próprio medidor de tempo o concebia. Mas Stuponic não dava atenção. Estava mais sintonizado com o grande, frio e inelutável Destino que o aguardava, e a tudo o que conhecia, do que com qualquer outro pensamento. "Fim", ele finalmente pode ouvir-se.


Ex-funcionário do Instituto Quasar de Pesquisas do Caos (IQPC), o último ser de carbono verdadeiro do mundo ainda vivo e pensante sabia que, dali a pouco, começaria, grosso modo, a encolher, num trágico e lento processo de rejuvenescimento. Antes mesmo de ser um bebê, se ainda estivesse respirando, Stuponic passaria fome, sentiria mais terror do que naquele momento e, o que é pior, não encontraria pai, mãe, tios, avós, primos, irmãos, sobrinhos, sobrinhas, amigos ou inimigos para diminuir seu desconforto. "Fim", ele repetiu. Stuponic pegou outra garrafa de cartúnia e abriu-a com os dentes amarelados que, de podres, não resistiram e se quebraram. Cuspiu porcamente os pedaços e levou a bebida à boca. Foi uma longa talagada com os olhos apertados, dos quais lágrimas insistiam em escapar.


Em Zelgrub, Dominus pensava seriamente em recorrer a uma garrafa semelhante à tomada, naquele mesmo momento, na superfície de Calixus, pela corporificação da antítese à ideia de que estaria sozinho no universo. Tamborilando os dedos nas botas luminosas e esfregando o baixo ventre com a outra mão, o androide relutava em abrir o congelador, para o qual olhava fixamente. Ele titubeou ainda por alguns segundos – pensou nos porres de Gerhdt, seu mestre, e nas bordoadas que dava na esposa após algumas doses. Mas isso não o impediu. Deu um longo e saudoso suspiro e retirou nervosamente a garrafa do compartimento gelado, onde se lia "Faça uma boa viagem". Convicto de que seria um excelente remédio para a Angústia, Dominus sacou a rolha e sugou o líquido de uma só vez com um canudo, pelo arremedo de boca que haviam projetado para seu rosto. Finda a operação "boa viagem", atirou a garrafa na parede e relaxou na poltrona, exatamente como fazia Gerhdt, antes de matar-se. Aliás, foi esta a imagem que ocorreu à conturbada mente do androide. O corpo do mestre esticado sobre a cama, ao lado da esposa e do filho de cinco anos, todos mortos pela ingestão dos comprimidos "Além".


Tão logo os cientistas do IQPC anunciaram a comprovação da permanência da alma após a morte, oito luas cheias de Calixus antes daquele dia, todo o mundo correu às farmácias para comprar os tais comprimidos, que garantiriam uma entrada sem problemas no "reino encantado do além", como dizia a bula. Até os androides, os superinteligentes bichinhos de estimação dos humanoides, haviam embarcado na febre do post mortem – o pessoal do IQPC afirmara que mesmo produtos da biotecnologia poderiam possuir almas resistentes à inativação dos corpos, desde que "desenvolvidas" em complicadas práticas ascéticas. O suicídio coletivo fora completo, em todos os planetas do universo. Isso porque, no dia seguinte à descoberta da "vida após a vida", os mesmos cientistas revelaram a data e a hora de início do temido processo de reversão, o Big Crunch, cinicamente apelidado pela mídia intergalática de Bang Big. Por obra de Deus, ou fosse lá que força misteriosa comandava aquela bagunça toda chamada universo, no entanto, sobraram um homem bêbado e decadente e um androide psicotizado, que acabara de enveredar pelo caminho do álcool. Um sem saber da existência do outro.


Stuponic largou a garrafa de cartúnia na mesa à sua frente e tombou, salivando e ruminando palavrões contra si mesmo. Ele sentia um misto de tristeza e loucura que jamais experimentara em sua torpe vida de cientista. "Caralho!", gritou. "Sempre achei graça em tentar prever as coisas, hic, agora sei exatamente o que vai acontecer comigo e, hic, estou ficando louco", ele disse – ou, melhor, pensou nisso e tentou dizer. O terráqueo dormiu por umas oito horas e acordou espantado, sentindo-se alguns segundos rejuvenescido – o Bang Big tivera início. A sensação de reversão só não livrou-o de amargar uma dor de cabeça cósmica. "Preciso dar uma volta e encontrar comida", pensou.


O único humano ainda vivo nas faces de todos os mundos do mundo entrou em seu módulo para viagens de curta duração, deu a partida e planou sobre o deserto como uma águia faminta. Stuponic tinha a esperança de encontrar uma escotilha aberta na planície – uma passagem que algum caluxiano mais afoito, na ânsia de morrer, tivesse esquecido de fechar. Depois de voar horas e horas, tomando-se o sentido inverso dos relógios analógicos, claro, ele finalmente avistou uma abertura, 200 metros abaixo de onde estava. Quando preparava-se para aterrissar, viu um ser de macacão prateado deixando a fenda e mirando, aparentemente tão surpreso quanto ele, o aparelho no céu. Emocionado, Stuponic perdeu o controle da nave, que entrou em espiral durante a descida e chocou-se violentamente contra o chão. Dominus observou a cena, tirou do bolso um aparelho de detecção de vida que, apontado para os destroços, a poucas dezenas de metros de onde se encontrava, recusou-se a emitir o sinal positivo. O androide deu de ombros e entrou pela escotilha. A porta se fechou. "Solidão", ele queixou-se, esfregando a mão em seu suposto plexo solar.