domingo, 27 de fevereiro de 2011

Do jeito que você queria

Por Evaldo Magalhães


“Olá, minha amiga, meu amigo; você que está em casa agora cedo, nos assistindo, porque quer caprichar no seu almoço ou no jantar de hoje à noite ou de qualquer dia da semana, quer surpreender a família, os amigos, levar um pouco de requinte à mesa, mudar a sua rotina, sair daquele arroz com feijão, bife, salada, batata frita – uma comida muito gostosa, sem dúvida, mas que vai deixando a gente acostumado, conformado, imaginando que pratos diferentes são algo de outro mundo.

Olá, queridas donas de casa, mulheres que trabalham dentro e fora de casa, e que não abrem mão de ir pra cozinha pra se realizar e satisfazer seus entes queridos. Um alô especial aos homens que também são, por vezes, donos de casa, cozinheiros, que fazem os pratos deliciosos degustados por suas famílias e gente próxima, que moram sozinhos ou, às vezes, com companheiros ou com companheiras, e que também querem dar aquele toque especial à refeição do dia a dia. É muito bom isso, não é?

É para todos vocês que a gente faz este programa Delicioso, com muito amor, muita dedicação, muito carinho. Nosso objetivo, sempre, é fazer a vida de todos vocês mais feliz.

Hoje, abrindo a semana, que certamente será uma semana abençoada pra todos nós, a receita que a gente vai apresentar é simples, mas riquíssima em sabor e sofisticação. Vocês vão ver.

Trata-se de um prato que, quando você o pede em um restaurante refinado, por exemplo, imagina que tem um monte de segredos, ingredientes caros, um prato que demanda muita experiência em gastronomia e um bocado de dinheiro. Mas, não, amigas e amigos. É uma delícia, mais uma delícia do seu programa Delicioso, que está ao seu alcance e ao alcance da sua família, da sua companheira, do seu companheiro, dos seus filhos, pais, primos, tios, dos seus amigos e amigas, enfim, de todos a quem você ama.

É um acepipe que qualquer um, com carinho, pode preparar! Não se gasta muito nele e fica pronto rapidinho. Do jeito que você queria, tenho certeza. Vocês vão ver. Estou falando do risoto de...”

Alex não estava muito inspirado.

Manhãs de segunda-feira, nos últimos 15 anos, jamais haviam sido as melhores para o show de culinária diário de uma hora que ele apresentava na Rede Você, Canal 32 – o Delicioso, um dos maiores sucessos da TV por assinatura, pelo menos em Belo Horizonte e cidades da região metropolitana. Além disso, a noite de domingo havia sido bem complicada: Mariana o levara a um inferninho de endinheirados, na Savassi, porque queria dançar e tomar champanhe. Mas ela dançava o tempo todo no trabalho: era uma das bailarinas/assistentes de palco do programa de variedades também diário de Joca Mayrink, no mesmo Canal 32. E ele não entendia como a namorada de 22 anos podia gastar as preciosas horas de descanso e lazer fazendo a mesma coisa.

Cansado da manhã e da tarde pedalando a mountain bike em Nova Lima, ele, do alto de seus quase 50, pensou mesmo em não ir. E em proibi-la de ir.

Sexo em casa, uma transa gostosa, mas sossegada, seria bem mais bacana. Mas aí os dois teriam uma daquelas brigas feias e ele não estava a fim de criar um inferno. Era preferível o inferninho.

Poderia também ter permitido que ela fosse sozinha, mas Mariana era bonita demais, perfeita demais, nova demais, boba demais, e seria presa fácil em meio a todos aqueles playboyzinhos de merda que batiam ponto na casa noturna.

Nem no céu ele a deixaria desacompanhada. Mesmo anjos, que não têm sexo, segundo dizem, certamente se interessariam por ela e tentariam alguma coisa. E se fossem anjos com um pouquinho de inteligência, bom papo, algum charme, grana e, principalmente, corpos sarados, daqueles que ele a flagrava seguindo com os olhos e admirando, sob os óculos escuros, no clube, não teriam dificuldade em levá-la para a cama. Era o que ele imaginava e temia, mais que tudo.

“...do risoto de abóbora com carne seca. Uma receita fácil e rápida. Rápida mesmo. Olha só: pra começar, a gente passa pra vocês a lista dos ingredientes: são 500 gramas de arroz – tem de ser o arroz arbóreo, tá?, que você encontra em qualquer supermercado e é mais indicado para risotos; 100 ml de caldo de legumes, e é muito importante que seja um bom caldo de legumes, porque é nele que vocês vão cozinhar o arroz; 500 gramas de carne seca desfiada, um ingrediente que você também encontra em qualquer açougue ou supermercado; 400 gramas de abóbora moranga, aquela que em algumas regiões do Brasil, principalmente no Nordeste, as pessoas chamam de jerimum... (e eu lembro que a abóbora deve ser bem picada, tá?); 50 gramas de queijo parmesão ralado; pode ser aquele queijo de saquinho ou, então, se você preferir e encontrar, o parmesão em peça, pra você ralar em casa; fica até mais gostoso, né?; duas colheres de sopa de manteiga – pessoal, a manteiga é um dos ingredientes principais dos risotos; conheço chefs que usam potes inteiros, o que, obviamente, não é nada bom para o colesterol, mas deixa os pratos uma delícia! –; uma cebola picada em quadradinhos, não em julienne ou em rodelas; e pitadas que bastem de pimenta do reino. Ah, sim, já ia me esquecendo: também vamos usar meio copo americano de... cachaça! Isso mesmo: cachaça!

Deu pra anotar aí, pessoal? Se não, não tem problema, porque o Marquinhos, nosso diretor, vai passar pra vocês na tela a lista completa dos ingredientes. Enquanto isso, e enquanto eu douro a cebola em dois ou três fios de azeite e começo a cozinhar o arroz aqui, até ficar soltinho, pra então jogar o nosso meio copo americano de cachaça na panela, vou contar pra vocês um pouco da história do risoto. Daqui a pouco vou colocar a abóbora picada em cubos nessa mistura, porque abóbora, gente, demora um pouco a cozinhar. Mas antes disso, teremos que esperar a cachaça evaporar e seguir cozinhando o arroz e, depois, a abóbora também no meu caldo de legumes maravilhoso, até ficar bem al dente, durinho, mas sem ser cru. Então, como eu ia dizendo, o risoto...”

Os dois conversavam com alguns amigos, no lounge do inferninho, antes de encarar a pista de dança, e Mariana foi pedir mais uma taça de espumante no balcão. Foi lá que encontrou um rapaz com o qual, aparentemente, tinha muita intimidade. Alex fingiu que não dava atenção aos sorrisos e à empolgação da namorada diante do garotão, mas ficou, de canto de olho, observando os corpos deles se encostando. Dois jovens belos, repletos de hormônios e desejo, se roçando. E um desses jovens era Mariana. Era Mariana.

“... o risoto é um prato que, segundo os historiadores, chegou à Europa no século 11, pela mão dos sarracenos. Sarracenos são aquele povo árabe, muçulmano, que ocupou a Península Ibérica, onde estão Portugal e Espanha, e também parte do que viria a ser a Itália em determinado período. Bom, entre outras influências, eles levaram muitas novidades culinárias pros europeus. E foi lá na região da Lombardia, no Norte da Itália, que surgiram, trazidos pelos sarracenos, esses grãos de arroz mais robustos, a que se dá o nome de arroz arbóreo. Bom, deixa eu mexer um pouquinho aqui porque a cebola dourou e o arroz está quase ficando no ponto que a gente quer, bem soltinho. A carne seca, eu a cozinhei e desfiei previamente, algo que não tem dificuldade, não é? Olhem aqui, nesse prato, como ficou uma beleza essa carne desfiada. Mais no final do preparo, vamos misturá-la ao nosso risoto...”

Quando Mariana voltou, com a champanhe, Alex não pode deixar de notar os mamilos intumescidos, o rosto corado, os perdigotos lançados no ar em "Oi, oi, amor", o que denotava excesso de salivação.

- Quem era o rapaz? – ele perguntou, sereno.

- Ah, um cara de Divinópolis que eu não via há um tempão. Fomos colegas de colégio –, ela disse, aérea.

Alex não quis saber se ambos haviam namorado. Estava na cara que haviam. Também não esticou a conversa sobre o reencontro. Deixara claro que havia percebido a reação dela e do garoto, fizera o papel de macho dominante; ela estava avisada.

Na pista de dança, ele dava os passinhos desanimados de sempre, mantendo o sorriso falso com que boa parte das pessoas se arma em pistas de dança, e via, preocupado, Mariana interpretar sua personagem mais sensual. A três corpos de onde ela requebrava, o rapaz de Divinópolis, o maldito garanhão interiorano, também se mexia bastante e fazia movimentos semelhantes ao do momento do coito, sem tirar os olhos dela. Mariana arredou sutilmente para o lado, na direção do ex-namoradinho. Alex a acompanhou, já sem se importar em parecer que dançava, mas nada a fazer ou dizer lhe ocorreu para evitar que a companheira esbarrasse no sujeito.

Ele disse alguma coisa no ouvido dela. E ela respondeu.

A leitura labial que Alex fez, já que a música estava altíssima, indicava, também apesar de atrapalhada pelo lusco-fusco das estroboscópicas da pista de dança, que ela havia combinado algo muito sórdido com o amigo dos tempos de colégio. O cozinheiro teve certeza de que a mensagem foi “eu quero muito você, mas precisamos nos livrar do coroa. Daqui a uma hora, me encontre na esquina da Getúlio com...”. Foi a convicção dos paranoicos, não a dos exímios leitores de lábios. Mas a lascívia com que ela encostou a bunda no baixo-ventre do garoto, ao se voltar novamente para Alex, pareceu corroborar o que ele havia lido.

“... misturá-la ao nosso risoto. Esse risoto de abóbora com carne seca, que leva cachaça, é, claro, uma invenção bem brasileira. Mas, pelo que a história nos conta, gente, a primeira receita consagrada de risoto, não sei se vocês sabem, tem sua origem por volta de 1570, na Comuna de Milano, justamente na Lombardia. Isso é onde fica hoje a cidade de Milão, que todos conhecemos graças à moda, aos times de futebol, Inter e Milan, não é?, à arquitetura, à arte e, certamente, à rica culinária. Pois bem.... Espera um pouquinho que o arroz está no ponto aqui pra eu derramar o copo de cachaça. Vejam como ferve. E a gente mexe um pouco e logo, logo o álcool evapora. Olha que beleza...”

Os dois continuaram dançando mais alguns minutos até começar um funk pesado, desses cariocas, que eram apreciados por uma parcela significativa dos riquinhos que frequentavam a casa noturna na Savassi. Mariana, por sorte, e a despeito de sua origem humilde, não gostava daquele tipo de música. Alex, que escutava Mahler e Debussy no MP3 do Honda do ano, nos engarrafamentos de Belo Horizonte, agradecia a Deus por isso. Os dois voltaram de mãos dadas ao lounge, sob gritos animalescos de quem se sentia embalado por aqueles sons e palavras.

– Amor, hoje eu não vou pra casa com você. Preciso dar um pulo no meu apartamento. Eu me lembrei de que tenho um monte de coisas pra fazer por lá. Molhar minhas plantas, separar umas contas. Você fica muito chateado? – ela disse, de um jeito doce.

Alex sentiu o pedido como um murro no estômago. O plexo solar dele virou uma bolha de vácuo, o coração acelerou e o suor brotou como se ele estivesse se transformando em um rio.

Pânico à parte, reuniu forças para responder:

– Tudo bem, meu sonho! – a palavra que ele queria dizer era pesadelo, mas se conteve. – Deixo você lá. Vai ser até bom porque estou muito cansado, a semana será puxada e, depois de horas passeando de bicicleta, preciso dormir. Dormir, sabe? – ele falou, também com doçura.

Mariana sorriu, angelical, e sugou o canudinho da água tônica com limão, passeando os olhos pelo ambiente como se não estivesse procurando nada de especial.

“...que beleza. Mas, então, durante a construção de uma capela, a Duomo di Milano, uma comunidade belga de vidreiros, estabelecida numa fazenda próxima, ficou incumbida de fazer as janelas, os vitrais do monumento. E muitos estudantes dessa arte de fazer vidros coloridos, que na época era uma arte muito respeitada, foram pra essa comunidade, como que para fazer um estágio, entendem?... Bom, agora que a cachaça evaporou toda, eu dou mais uma mexida e finalmente jogo os pedaços de abóbora. Agora, sim, eles vão cozinhar direitinho e por um bom tempo à medida que vou jogando o caldo de legumes, para não secar...

Mas, como eu ia dizendo, e vou continuar falando, enquanto deposito os cubos de abóbora... Como eu ia dizendo, um desses estudantes tinha uma técnica muito bacana: ele misturava açafrão, isso mesmo, açafrão na areia que resultaria no vidro. Com isso, o rapaz obtinha uma coloração amarela maravilhosa no vidro. O mestre da vidraria, um sujeito muito brincalhão e até um pouco chato com os estagiários, como a maioria dos chefes, não é?, ficava dizendo pra esse estudante: desse jeito, garoto, você vai acabar misturando açafrão no nosso risoto! E ele ria muito disso. Sim, porque já se comia risoto, mas era um arroz sempre branco,e ninguém imaginava adicionar um corante ou uma especiaria tão peculiar como o açafrão no arroz... Esse rapaz, pra se vingar das brincadeiras do mestre... Vejam só como eu vou banhando o nosso risoto e a abóbora com o caldo de legumes. É pra evitar que seque. e continuar cozinhando. Daqui a pouco eu adiciono a manteiga, tá?... Mas o rapaz...”

Alex deixou Mariana na porta de casa. O apartamento, em um prédio antigo de três andares na Rua Pernambuco, ficava no segundo pavimento e, como sempre fazia, embora lutando para não deflagrar uma ruidosa discussão com a namorada, ele apenas disse “até mais, meu amor” e pediu a ela que entrasse. Ele aguardaria que Mariana acendesse a luz da sala, de frente para a rua, duas vezes, ligando e desligando o interruptor, para ir embora.

Os dois se beijaram rapidamente e ela desceu, rebolando, deliciosa, linda como sempre. Antes de abrir a porta principal do edifício, Mariana mandou-lhe um beijo, tocando a palma da mão direita com os lábios carnudos e a estendendo em direção ao automóvel. Também como era hábito, Alex fingiu que colheu o presente no ar e que o engoliu.

Assim que ela saiu do seu campo de visão, o cozinheiro endureceu o semblante. Deu a partida no carro e iniciou a volta pelo quarteirão. Segundos depois, estacionou na Rua Inconfidentes, desceu do Honda e foi para a esquina, onde, debaixo da marquise de uma lanchonete fechada, acendeu um cigarro e pôs-se a esperar, observando o edifício.

A sensação de um soco no peito ressurgiu logo, assim que ele a viu deixando o prédio.

“...o rapaz resolveu se vingar. Depois de anos de chateação com a história de que o açafrão poderia acabar indo parar no risoto, ele subornou o cozinheiro da fazenda para que adicionasse açafrão no prato que seria servido na festa de casamento da filha do mestre da vidraria... Opa! Veja que o nosso risoto está chegando ao ponto ideal. Al dente, mas cozido. É hora de adicionar a carne seca fatiada e misturar bem.... A abóbora está desmanchadinha, dando aquela cor especial .. O próximo passo; vou misturando a carne aqui, verificando a consistência; o próximo passo é colocar a manteiga, aquelas duas colheres de sopa de manteiga... Isso, vou mexer mais agora, em fogo brando. Desde o o início, estamos com fogo brando, tá, gente?.... “

– Mariana! – ele gritou.

Ela não se virou. Estava com fones de ouvido, provavelmente escutando Sexual Healing, que adorava, no iPod que Alex lhe dera de presente. O cozinheiro a seguiu, guardando distância de poucos metros. Mariana subiu a Rua Pernambuco e, ao chegar à Cristóvão Colombo, parou, bem em frente ao McDonalds. Ela começou a olhar para os lados, ansiosa.

Alex tirou do bolso interno do Armani uma pequena faca de cozinha Saladini, importada, própria para queijos, que levava como um amuleto onde quer que fosse. Aproximou-se de Mariana por trás e deu uma estocada na carótida dela.

– Pronto. Do jeito que você queria – sussurrou, apertando os lábios contra a bochecha macia e cheirosa da namorada.

Mariana gritou, o sangue jorrou e ele correu.

“... tá, gente?... Bom, mas aí o cozinheiro fez o que o rapaz pediu e o risoto servido no jantar do casamento ficou estranhamente amarelo. O mestre achou aquilo um absurdo, mas logo se acalmou, ao ver que todos estavam se deliciando com o arroz, apesar da coloração e do sabor modificados. Nascia assim o famoso Risoto Alla Milanese, uma receita muito famosa até os dias de hoje... Legal, não é?.... Bem, mas nosso risoto já está praticamente pronto. Agora, antes de desligar o fogo, eu acrescento o parmesão ralado e a pimenta do reino e vou salpicando e misturando, salpicando e misturando.... Opa! Parece que temos visitas ilustres aqui hoje. São uns homens fardados. E parece que há um de terno também., com cara de delegado. Por favor, senhores, venham aqui pra frente das câmeras. Venham, não se acanhem. Não vou deixar vocês irem embora sem experimentar esse prato... Isso mesmo, esse prato Delicioso!...”


segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Gloriosa

Não é lenda.

A “vagina gloriosa” existe e um cara pode ter o privilégio de encontrá-la duas, três, até quatro vezes na vida. Mais que isso é exagero. Talvez até aconteça, mas, nesse caso, ou o sujeito é muito sortudo ou é daqueles que se fartam de mulheres sem muito critério, a ponto de não distinguir tipos de vaginas – o que, obviamente, obnubila o reconhecimento da gloriosa.

Experimentei o prazer, na ausência e na não necessidade de usar outra palavra, de ter com essas genitálias raras em duas ocasiões nos meus quase 30 anos de vida sexual ativa.

Ou seja, até agora.

Espero, ansiosamente, portanto, me defrontar com mais uma ou duas!

Mas vou contar como foi a primeira vez.

A mulher em questão é uma, digamos, artista. Uma alma boa e excêntrica mais velha que a minha uns duzentos anos, cujo corpo que habita também supera o meu em uns 15 anos.

Uma loba faminta, como ela mesma se definia.

(Cabe aqui um esclarecimento importante para a hermenêutica da vagina gloriosa: a mulher que a ostenta não precisa ser gostosa, linda, maravilhosa, nova, de meia idade, velha... Nada disso! Pode ser até um bucho, uma derrotada, uma fêmea aparentemente alijada do jogo do sexo. Não importa! O que importa é que, quando a gente adentra a cavidade esplendorosa dela, e ela, a mulher, deixa aflorar sua estonteante lubricidade e começa a operar um pequeno milagre no pau e no cérebro da gente, o mundo gira mais rápido, tanto que ganha novas cores e dimensões).

Mas a minha artista não era feia, não.

Pelo contrário: tinha um corpo bem feito e muito conservado, para a idade e em razão do fato de que tinha dois filhos bem grandinhos já. Era dona de traços finos e de uns olhos maravilhosos, levemente esverdeados e ensolarados, calmos como mar de almirante. Eu os descrevia para ela, também sem muita originalidade, mas com sinceridade, como “janelas de uma alma antiga”. Pareciam isso mesmo.

E a artista, paradoxalmente, apesar dessa espiritualidade toda que banhava o mundo através dos olhos, acabou revelando um furor sexual que me deixou quaaaase constrangido quando a gente transou.

***

Descobri que ela tinha uma vagina gloriosa logo no primeiro dia em que nos vimos!

Digo isso porque a gente começou a se seduzir bem antes, por mensagens.

Vale a pena contar, porque foi uma coisa curiosa: frequentávamos regularmente uma loja de aluguel de livros, na Savassi, em meados dos 80 – um tipo de empreendimento que, infelizmente, não existe mais. E percebemos ali, a princípio, que tínhamos o mesmo gosto literário. Baseados nisso, embora nossas visitas ao local nunca coincidissem, começamos a deixar papéis escritos à mão com pequenos textos nas páginas 69 dos livros, dirigidos a nós mesmos.

Claro, contávamos com a ajuda da dona da loja, que nos dizia que livro eu ou a artista havíamos alugado por último, e assim a gente podia trocar os bilhetes. Como o lugar era pouco movimentado, nunca houve confusão, do tipo meu papel ou o dela ser lido por outra pessoa.

Fato é que, pelo conteúdo que essa “conversa” foi adquirindo, logo surgiu entre a gente uma paixão fodida, um furacão de tesão e paudurescência, de joguinhos de frases inteligentes toma-e-volta, de declarações subliminares de amor kamassútrico até promessas explícitas de vou te foder toda, sua delícia, e de vou chupar você como nenhuma outra chupou, seu filho da puta.

Mensagem vai, mensagem vem, deu-se que marcamos um almoço.

Embora já a tivesse visto por fotos – chegamos a colocar fotos dentro nas páginas 69 dos livros – fiquei bastante impressionado com a aparição em três dimensões daquelas carnes.

E uma das coisas que mais me chamaram a atenção, além do bom estado geral para a idade, foram os cabelos encaracolados volumosos, de um vermelho gritante.

Com uma brancura britânica, daquelas que deixam à mostra as veias na tez pálida, ela me pareceu uma cópia da tal Boadiceia dos Icenos, a rainha guerreira ruiva, celta, de olhos doces e de espírito sábio, mas que emanava uma gigantesca e alucinante energia animal: garras de unhas negras e a voz grossa, que até hoje retumba na minha cabeça, de uma leoa que pode ser bem malvada quando o assunto é a alcateia – grupo do qual, aparentemente, eu começaria a fazer parte.

O perfume da minha artista (Floratta, eu descobri depois) e a minissaia diminuta e pouco apropriada para uma mulher de quase 40 anos, conforme a elucubração idiota que fiz no momento em que a vi, também me tiraram do sério.

“Nuh”, eu disse, alumbrado, no restaurante.

E ela sorriu, enlevada, os olhos quase revirando, porque o meu “Nuh”, uma espécie de interjeição de arrebatamento que me era bem característica nas mensagens enfiadas nas páginas 69 dos livros, a deixava louca de tesão.

Depois do almoço, um filé de frango meio sem graça com purê, arroz e salada, corremos para um motel, na BR-040, saída para o Rio de Janeiro.

Além da vagina gloriosa, ela tinha carro!!!

Chegando lá, foi aquela história: primeira trepada, ambos nervosos, sem saber como começar. Mas, passados uns cinco minutos de beijos desajeitados, saquei que a artista era uma artista ali na cama também.

No sexo oral com o qual ela me presenteou, os lábios dela, firmes, empurravam a pele do meu pau e deixavam à mostra a glande, que ela acariciava com a língua macia que parecia até bifurcada, tamanha a precisão e a variedade dos movimentos; depois, com a mesma pegada forte dos lábios, ela trazia a pele de volta ao topo. E fez isso inúmeras vezes, para cima e para baixo, sempre salivando e gemendo.

Eu mal sabia que o melhor, se era possível, ainda viria.

E veio.

Depois de alguns minutos de um prazer sem igual, ela ergueu a cabeça, fogo nos olhos, as narinas dilatadas, e, com o corpo suado, escorregou em direção ao meu rosto. A vagina gloriosa, que eu ainda não sabia que era gloriosa, foi pressionada na minha perna no trajeto e deixou um rastro molhado e deliciosamente quente.

Ela me deu uma lambida não muito demorada na boca e, para minha surpresa, continuou a escalada, apoiando as mãos na cabeceira da cama. Os seios grandes e brancos rasparam meu queixo, seguidos pela barriga proeminente, mas lindinha, que passou a curta distância dos meus olhos. E, finalmente, a vagina, que também me untara o peito, estacionou sobre os meus lábios.

Beija!, ela disse.

Fiz o que ela pediu sem pestanejar: um beijo apaixonado, a língua retorcendo na cavidade morna e cheirosa que ela me oferecia. A gloriosa, juro, parecia outra boca, encharcada, contraindo-se, pulsando, sugando e apertando meus lábios, enquanto ela rebolava e gritava de prazer, encaixada em meu rosto.

Eu estava quase no Nirvana quando ela ergueu o colo e o recuou, descendo de mim, claramente pronta para a penetração. Antes daquele momento, que seria uma espécie de acontecimento divino, a artista lambeu minha boca e minhas bochechas, impregnadas do sabor da gloriosa, com tanta volúpia que chegou a me morder.

Ela abandonou lentamente minha boca, como se não houvesse mais o que sorver ali, e olhou fundo nos meus olhos, dessa vez com um brilho de doçura.

“Você está preparado?”, perguntou, um tanto solene.

“Deus, mas é claro!”, pensei. “O que essa moça está pensando?”.

Seria ela a portadora de uma vagina dentada, mito presente em um dos livros que alugáramos na tal loja em que havíamos nos conhecido – “A Grande Arte”, de Rubem Fonseca –, ou algo do gênero?

Assenti, sem que houvesse de minha parte uma expectativa diferente da que se tem quando se está prestes a penetrar qualquer mulher que desperta a libido.

“Ah, seu incauto”, costumo dizer a mim mesmo, hoje.

O que seria uma transa fascinante, sem dúvida, transformou-se numa viagem alucinada e sem precedentes. Inesquecível.

Entrar na vagina gloriosa foi difícil: era muito apertada.

Mas sair dali foi muito mais.

Mais tarde, a artista me confessou que era praticante de pompoarismo, o que favorecia seu desempenho. Mas nem isso explicava a montanha russa em que meu pau e meu cérebro passearam.

Foram poucos minutos, admito, mas pareceu uma bela e eletrizante eternidade: o sincronismo e a orquestração do músculos vaginais, a mucosa ao mesmo tempo contritora e escorregadia, engolindo e mastigando meu pinto com um misto de força e delicadeza; a contenção mágica do nosso orgasmo simultâneo – ela parecia sentir a aproximação do êxtase e fazia um movimento que impedia nossa explosão –; a prolongação aparentemente infinita do prazer.

Depois dessa primeira transa, repetimos a dose em mais cinco ou seis ocasiões.

E nunca mais nos vimos.

Mas comecei ali minha conta de vezes em que tive com as gloriosas. A segunda, conto outra hora. A terceira e, Deus queira, a quarta, também relatarei.

Eu juro.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Eram os deuses astronautas?

Por Evaldo Magalhães

A vida é um soluço alto, doído, entre um sono profundo no reino do nada e o cochilo eterno na terra do coisa alguma.
A frase era do português Pereira, o velho, dono de um boteco daqueles com ovos coloridos e potes giratórios de balas no balcão, sempre cheio de bêbados, na esquina, pertinho da casa onde Paulinho passara a infância.

Na época de menino, ele não entendia muito bem as coisas que o Pereira, o velho, e mesmo que o Pereira, o filho, diziam – coisas que pescava quando ia pegar uma tubaína de guaraná na conta da mãe ou comprar maria-mole no bar. Mas por algum motivo achara aquilo profundo, bonito, definitivo, e guardara pro resto da vida, ou do próprio soluço.

E foi na frase dita com frequência pelo Pereira Velho, geralmente quando se deparava com um diálogo filosófico labiríntico entre os habitués do bar, que ele pensou assim que chegou ao quarto do hospital. O quarto onde Viviane, a prima que regulava com ele em idade, lutava pra não sucumbir a um câncer que se havia espalhado e que tirara dela todo o vigor possível numa mulher de 40 e poucos anos.

Hoje, homem feito, ele sabia muito bem o que o dono do bar queria dizer.

Mas Paulinho não deu uma de Pereira Velho.

Não declarou de jeito solene que a vida é uma espécie de espasmo entre um grande nada e um nada enorme ao mirar com os olhos molhados a prima na cama do hospital. Não havia propriamente um debate filosófico ali, no qual fosse necessária uma intromissão intelectual e um encerramento aforístico, com chave de ouro.

Havia Viviane, moribunda e com os sonhos empalidecidos; e havia ele, aparentemente sem nada que pudesse dizer a respeito, mas com muita coisa a sentir, sentindo tudo o que se podia sentir ali.
Paulinho pegou a mão dela, fria, e disse uma frase sua, uma coisa inesperada que lhe ocorreu, e que acabou provocando um sorriso e um diálogo, afinal.

– Vivi, lembra quando a gente era criança e imaginava portais mágicos entre as pilastras da sua casa, brincando de “Eram os deuses astronautas”?

Viviane assentiu com os olhos castanhos claros apertados, rasgos de luz que ela tinha desde pequena, mas que naquele momento insistiam em se fechar por mais que a luz lá de dentro brigasse pra sair. Paulinho continuou:

– Você ainda tem vontade de passar por um desses portais?

Ela cerrou os rasgos de luz, com um esboço de alegria. Ele retomou:

– A gente tinha lido o livro do Erich von Däniken e estava certo de que os incas haviam sido visitados por extraterrestres. Você lembra? Não sei se fui eu ou você quem acrescentou um ingrediente a mais na nossa fantasia: se a gente pensasse com força, muita força mesmo, um tipo de passagem se abriria entre as pilastras da garagem da sua casa. Daí a gente teria que cruzar o portal com confiança e fé, com os olhos fechados, e, se fizesse tudo direitinho, sairia do outro lado, em plena selva, entre pirâmides majestosas e cidades cheias de mistério, bem na época em que os deuses astronautas mandavam nos incas. Você lembra, Vivi?

Os lábios dela, secos e sem cor, se entreabriram, ensaiando felicidade. Paulinho prosseguiu:

– Mas a gente nunca conseguia! Não porque o portal fosse só uma invenção besta de criança, mas porque nunca tínhamos confiança e fé suficientes. E, principalmente, porque nunca tínhamos coragem pra fazer tudo direitinho, pra deixar a vida que a gente levava e surgir de repente no meio de uma selva exótica, pirâmides e deuses astronautas. A gente era bunda mole, né?

Um som eletrônico agudo e contínuo serviu de alarme para que duas enfermeiras entrassem afoitas no quarto. Elas colocaram uma máscara de oxigênio em Viviane e pediram a Paulinho que se retirasse. A mãe, o pai, os irmãos e o marido dela, ao lado da cama, choravam, à espera do médico.

Do corredor, Paulinho observou o desespero dos familiares e a partida de Viviane.
Deu as costas e deixou o local sem dar as condolências aos tios, aos primos e ao marido dela, que, aliás, não se lembrava de já ter visto.

No primeiro andar do hospital, ao passar sob o pórtico da entrada, Paulinho fechou os olhos.

Confiança e fé, ele disse.