sexta-feira, 18 de novembro de 2011
sexta-feira, 2 de setembro de 2011
Rotina
Física logo no primeiro horário e, se presta atenção no professor – e precisa fazer isso, porque outra bomba não será tolerada pelos pais –, certamente vai sofrer uma dor de cabeça fodida que se prolongará por todo o dia. Potencializada pelo perfume horrendo da loura baranga que se acha a cópia perfeita da Olivia Newton-John na carteira da frente. E da mistura do odor daquela essência de gosma de boi almiscareiro com o cheiro de benzina que vem do colega Nestor drogado da carteira ao lado.
Tudo pouco promissor.
No recreio, lufada de relativo contentamento, enfim: ele e alguns colegas igualmente derrotados atravessam a rua e um dos caras acende um baseado, pra tornar a manhã menos cruel. Chupa, prende, solta. Risos histéricos de caras e bocas banais. Um olhar semicerrado pro alto, a constatação de que a porra do azul do céu é um troço maravilhoso e misterioso. Um breve momento "ainda tem que rolar muita coisa na minha vida" e a volta à sala, onde o professor de literatura fala sobre a sujeira de um cortiço. Grandes merdas.
No almolço, em casa, batatas e carne gordurosa cozidas e uma medonha mistura de coisas verdes, vermelhas e amarelas, mesmo que ele esteja pensando em fritas crocantes e em um bife pingando sangue e em arroz soltinho e farofa e vinagrete. É foda. Nem tudo na vida é do jeito que a gente quer. Mas a larica é grande. Boca, mastiga, engole.
Acabou o almoço? Fazer o quê? Estudar? Tá de onda, cara? Ouvir Selling England By The Pound, pensar na moreninha magrela com narizinho de Natalie Wood, bater uma punheta rápida e dormir a porra da tarde inteira. Dor de cabeça? Como sempre.
Seis horas. Ave Maria. Toca levantar que a mãe já tá puta com a dormideira. Chuveirada que o calor tá brabo. Tira uma maçã da geladeira e come sem lavar. Vai mastigando como um boi até ficar perto do caroço, aí roi como um ratão do banhado divetindo-se com o crec-crec. Põe o Led na vitrola, alto mesmo, pra incomodar a vizinhança, desobediência civil-adolescente, it's been a long time this is rock'n'roll. Veste roupa preta da noite e sai de casa alerta, um caçador.
Mais um baseado com o cabeludo da Serra, torta da Casa de Irene, cerveja com três amigos que tiveram o dia bem parecido, e pá! A morena Natalie Wood aparece linda, gostosa pra caralho, com o namorado almofadinha no boteco. A cabeça latejante gira, ideias revolvem, a faca no prato vazio da torta brilha.
A adrenalina invade.
O voo, a garganta.
Corta.
Fim.
segunda-feira, 7 de março de 2011
Dodô e Osmar

O olhar desdenhoso e metido a besta do figurão, na foto da coluna social do Estado de Minas, irritou tanto Osmar que ele bolou um plano diabólico, embora despropositado. Dali em diante, poderia dedicar seu tempo útil e inútil a destruir, a aniquilar, a transformar em um quadro dantesco a vida do doutor Anastácio Donizetti Sobrinho, dono de uma siderúrgica na periferia da cidade.
"Eu não conheço e nunca vi esse cara", ele pensou, "mas vale a pena fazer alguma coisa pra tornar meus dias mais prazerosos e os dele, uma merda sem fim", concluiu, enquanto a mãe anunciava que a macarronada e o frango estavam servidos.
Na verdade, aquele desabafo fora, ou parecera ter sido ao próprio Osmar, apenas uma brincadeira, e de muito mau gosto. Uma piada íntima, totalmente sem sentido. Ou uma espécie de passatempo mental, vindo de alguém desesperado na tentativa de amenizar os efeitos devastadores de um domingo sordidamente estéril, rotineiro e ensolarado, na casa da mãe.
À noite, enquanto assistia à televisão ao lado dos filhos e da mulher, Osmar nem mais se lembrava da bravata de horas antes. Pensava era nas contas e mais contas a pagar, no dentista e no cardiologista a marcar e no sonho, sempre enevoado e aparentemente irrealizável, de ficar rico, de comprar uma cobertura com piscina e churrasqueira, um sítio e uma caminhonete importada, à diesel, com ar condicionado e CD player.
Na segunda-feira de manhã, contudo, quando Osmar tomava café e preparava-se para ir ao trabalho, foi como se, de repente, uma lufada congelante de ideias malévolas o atingisse. O gazeteiro compromisso assumido consigo mesmo, no dia anterior, ressurgiu, sério e monstruoso.
"Uma merda sem fim", ele disse, soltando, em seguida, uma risada vincentpriceana, cuspindo migalhas de pão por todos os lados.
"Ih, papai pirou!", comentou Docimar, a filha mais velha.
Osmar chegou ao escritório, como de costume, às 8h. Antes de saber da secretária a agenda e as visitas a fazer no dia – ele era corretor de imóveis e tirava seu sustento de comissões –, tratou de achar no catálogo o telefone e o endereço do Dr. Donizetti Sobrinho.
"Doutor, o caralho! Nem segundo grau esse babaca deve ter", disse, baixinho.
O empresário morava em um elegante bairro da Zona Sul, isso todo mundo sabia, mas tinha sete números de telefone registrados em seu nome, todos na mesma região. Fora os quinze da usina siderúrgica.
Osmar tentou o mais simpático, que podia ou não ser o da casa do homem, sem a mínima ideia do que diria.
Uma voz rouca de mulher atendeu.
"Eu quero falar com o salafrário do Donizetti", ele disse, de um jeito imperativo e ameaçador.
"Olha", a mulher respondeu, ao fim de um longo bocejo, "o filho da puta não mora aqui. Sou uma das infelizes ex-mulheres dele e, se você quer o telefone da casa onde ele está morando, desista, porque o Donizetti mandou tirar da lista. Nem eu tenho o contato".
"Tudo bem, desculpe o incômodo", Osmar despediu-se, um tanto aliviado.
"Ei, não sei quem é você, mas bem-vindo ao clube cada vez mais cheio de pessoas que odeiam aquele balofo. E boa sorte, seja lá o que você estiver pretendendo!", a mulher disse, antes de desligar.
Osmar colocou o telefone no gancho e, transpirando, caiu em si:
"Puta merda, eu devo estar louco!", repreendeu-se. "Acho melhor trabalhar e esquecer essa besteira".
O corretor voltou para casa à noite, tirou a gravata e pegou a cerveja mais gelada do freezer. Ficou ali mesmo na cozinha, recostado na parede, bebericando, enquanto Sandra fritava hambúrgueres para as crianças. Foi quando o vendaval de pensamentos demoníacos assolou-o de novo e ele não conseguiu se conter.
"Tem um cara aí, da alta sociedade, prejudicando muito meu trabalho, meu bem", ele disse casualmente a Sandra, sem saber exatamente por que o fazia.
"É? Como?", ela quis saber, subitamente interessada.
Nos minutos seguintes, Osmar desfiou uma história fantástica, diante da expressão cada vez mais abestalhada da esposa.
Disse que o empresário Donizetti Sobrinho – "Conhece a peça?", perguntou a ela, que balançou a cabeça para os lados – acompanhou-o, dias antes, a um superapartamento de cinco quartos, em um bairro chique da cidade.
O homem, “gordo e fedorento como um porco”, fingira-se interessado no apartamento apenas para dar uma cantada no corretor.
Osmar contou ter reagido com firmeza:
"Falei que eu era um profissional, que estava ali pra trabalhar e que poderíamos continuar conversando, desde que fosse sobre negócios. Disse ainda que, mesmo que fosse viado, jamais toparia um programa com um elefante asqueroso daqueles", relatou a Sandra, boquiaberta.
"Depois disso, o cara passou a ligar pro meu chefe, pedindo minha cabeça, alegando que eu fui muito grosseiro e que não servia pra vender imóveis", prosseguiu.
Sandra perguntou o que o patrão achara de tudo e Osmar carregou nas tintas:
"Você não vai acreditar! Ele falou que mais um deslize meu com o gordo, que inclusive quer ver outro apartamento, e estou na rua!"
Na verdade, o que o corretor tentava era fazer com que não apenas ele, mas toda a família odiasse o tal doutor Donizetti Sobrinho, de quem ninguém naquela casa jamais ouvira falar. Além de conseguir aliados em sua maquiavélica empreitada, teria uma boa desculpa para eventuais excessos que viesse a cometer na execução do plano.
"Você tem que fazer algo a respeito, amor! Vá à polícia, denuncie, isso deve ser assédio sexual, sei lá. Conte a história pros seus amigos, fale com os jornais, bote a boca no mundo", disse Sandra.
"Deixa comigo", ele respondeu, caminhando para a sala de televisão, um sorriso sacana estampado.
Na manhã seguinte, Osmar tornou a ligar para a mulher com quem conversara na segunda-feira. Ele tinha certeza de que Sandra, que deveria ir ao cabeleireiro naquela tarde, contaria a história a duas ou três amigas, que por sua vez relatariam o ocorrido, de forma ainda mais apimentada, a atendentes do salão e a conhecidas, que então falariam com Deus e o resto do mundo sobre a suposta preferência sexual e os métodos de abordagem do doutor Donizetti Sobrinho.
"Escute, dona, preciso lhe perguntar uma coisa: como a senhora ficou casada tanto tempo com um gay?... Não, não se assuste. É que um amigo meu, que é corretor de imóveis, me contou que...", e repetiu o caso para a mulher de voz rouca.
"Meu Deus, tenho de espalhar isso, não perco a oportunidade por nada no mundo", ela agradeceu e desligou.
Quarta-feira, depois do almoço, o corretor estava com os pés sobre a mesa do escritório e palitava os dentes.
Só pensava na bomba H que havia lançado sobre a vida do empresário e dava risadinhas de si mesmo.
A secretária usou o intercomunicador:
"Osmar, tem um tal de doutor Donizetti aqui e... Xi, ele entrou!"
O gordo nem esperou Osmar se levantar. Agarrou o corretor, num abraço lascivo, aplicou-lhe um beijaço de língua, afastou-se um pouco e sussurrou-lhe no ouvido:
"Boas notícias, garoto! Parece que todo o mundo já está sabendo do nosso caso”, disse. "Prometo que, se a gente ficar junto, te dou aquela cobertura, aquele carro, e, se você for bonzinho, até aquele sítio..."
Osmar, pálido, trêmulo, mas como que voltando de um sonho, gemeu:
“Mas... cê quer mesmo que eu me separe da Sandra, Dodô?”
O aviador

Aos domingos, no clube, quando não estava na quadra exalando o uisquinho moderado do sábado, jamais dispensava, ao desfilar entre as mesas à beira da piscina, nas quais distribuía saudações aos muitos amigos, o acompanhamento dos óculos de grife de lentes verdes.
Talvez os usasse para passar a impressão, sobretudo às mulheres de meia idade que frequentavam o local, muitas delas casadas, de que poderia muito bem ser um experiente, viajado e instigante piloto de Boeing em férias em Belo Horizonte. E não um não tão bem-sucedido vendedor de automóveis nativo, um estulto filho da capital que jamais havia ido muito além de São Paulo, ao sul, ou da Bahia, ao nordeste. E sempre de carro, já que morria de medo de aviões.
Talvez os usasse apenas para olhar, sem precisar dar satisfações, o que realmente queria ver.
Ele era o tipo que jamais revelava o que sentia ou pensava, particularmente quando isso pudesse colocá-lo em apuros. E o que sentia e pensava, quando mirava as bundas duras por horas e horas de aeróbica ou hidroginástica, ou mesmo as mais flácidas, mas apetitosas, das esposas e amigas dos amigos ou das desconhecidas, estendidas nas imediações da piscina, não merecia mesmo ser revelado; ele só queria fodê-las.
“Eu chupava essa. Olha só... puta que o pariu...”, “Ah, essa aí eu rasgava em duas...”, “Putz, eu me lambuzava naquela...” eram frases que comumente lhe ocorriam, nesses momentos, apesar de nunca pronunciá-las.
E Bruno atingia, vez ou outra, seus objetivos inconfessáveis.
Naquele domingo no clube, conseguiu levar para debaixo de uma das três grandes amendoeiras dos fundos do terreno, perto da pista de atletismo, a amada e aparentemente fidelíssima mulher do Caldeira, colega da agência de automóveis.
Francilene, uma morena alta e vistosa de seios fartos e ideias curtas, que, a despeito dos 48 anos, ostentava um traseiro de dar inveja a muitas meninotas, cedera com facilidade aos encantos do aviador de mentira.
Tudo começou em uma roda de carteado, no bar da piscina das plataformas de mergulho, o mais disputado pelos sócios antigos. Entre uma batida e outra, as do jogo de canastra e as de pêssego e maracujá, das quais Francilene se dava ao luxo de abusar – nos finais de semana ela bebia excessivamente como boa bipolar alcoólatra que era –, Bruno aproveitou para roçar o pé descalço na perna macia, a despeito de algumas manchas de microvarizes, da então apelidada “mulherona do Caldeira”, sua parceira no jogo.
– Você bate pra mim ou eu tenho que bater? – ele cochichou, acreditando que a frase seria sutil o suficiente para plantar nela uma sementinha de tesão.
– Bato com prazer. E engulo tudo! – Francilene respondeu, incisiva, sensual, mordendo os lábios, sem esconder o pilequinho, mas ciente de que Juvenal e Estela, a dupla de idosos oponente, não haviam escutado.
– Então bate agora, bate!
– Tá. Você manda. Eu faço. – ela disse, colocando, literalmente, as cartas na mesa.
Os dois nem esperaram a contagem dos pontos, tarefa que Juvenal, depois de esfregar as mãos, confiante na vitória folgada, se preparava para por em prática. Deixaram a mesa correndo, um para cada lado, simulando aperto para ir ao banheiro ou alguma outra urgência.
O local do encontro fora definido por Bruno pouco antes. Ele apontara para o símbolo de paus da carta três e depois dissera, casualmente, que gostaria de se dedicar mais às corridas na pista emborrachada do clube, para manter a forma. Francilene, que não era muito esperta, entendeu imediatamente o recado, o que deixou em Bruno a sensação de que, ao contrário do que se diz por aí, o álcool pode aguçar a mente, em vez de embotá-la.
Enquanto Caldeira nadava seus dois mil metros habituais, em um estilo classificado como “cachorrinho-doente-livre” pelos falsos amigos, que riam dele e de seu patético exercício, todos os domingos, na piscina maior do clube, Bruno fodia Francilene gloriosamente atrás de uma das amendoeiras, estrategicamente localizada em um dos raros pontos cegos da plana vastidão do clube.
A menos de 100 metros de onde o marido se esforçava para manter a forma, pensando justamente na esposa e na possibilidade de ela querer trocá-lo por alguém mais esbelto, Francilene dava urros de prazer a cada estocada na bunda. Bruno se confundia: não sabia se tampava a boca da mulher ou se concentrava sua atenção integralmente no entra-e-sai. Mas isso não diminuía seu ímpeto.
O gozo foi caudaloso.
Francilene, com as pernas bambas, reuniu forças e deu um passo à frente para desenganchar-se. Lépida para uma mulher de quase 50 anos, virou-se e se agachou para sorver, voraz, as últimas golfadas de Bruno, antes que ele dissesse “você é louca, você é doida” e a erguesse para o imperioso abraço pós-coito.
– Temos que fazer isso mais vezes, meu anjo.
Ele não queria fazer aquilo de novo. Ela era só mais um troféu na sua não tão extensa galeria. Mas a compulsão de dizer coisas assim em momentos como aquele era irrefreável.
– Eu quero muito! Eu te desejo desde a primeira vez que te vi – ela respondeu, docemente, com os olhos brilhando para o “piloto” de cabelos grisalhos e porte atlético que imaginava ter acabado de satisfazer.
– Agora, vai, anda, que o Caldeira deve estar te procurando. Vai, gostosa.
Com ar vencedor, Bruno deu um tapinha na bunda maculada de Francilene, que acabara de abotoar o maiô estampado com rosas, e seguiu em sentido oposto, amarrando a sunga, de volta à piscina dos mergulhos.
Caminhou em direção ao bar com a certeza de que o mundo era um lugar bacana, mesmo que ele não fosse um aviador, como se imaginava ao circular com os óculos escuros de marca. E que as mulheres, afinal, ainda caíam a seus pés, aos 46 anos, graças à estampa de atleta corado e de homem capaz e preocupado com o destino de centenas de passageiros, a cada voo. E que, embora ainda subsistisse o sonho distante de ser rico e, quem sabe, ter filhos, uma boa esposa, uma fazenda gigante de gado em Goiás ou Mato Grosso e, finalmente, um avião que pudesse conduzir com maestria até lá, nos fins de semana, havia boas coisas a desfrutar em sua vidinha por vezes insípida.
- E então? Rola uma petequinha, amigo?
Era Caldeira, que, botando os bofes para fora, ladeava a mesa onde Juvenal e Estela discutiam sobre a pontuação da canastra encerrada minutos antes.
Caldeira, provavelmente, acabara de perguntar aos idosos onde estava sua deusa Francilene e ouvira de um deles que ela, aparentemente, havia ido ao banheiro. O amigo traído se enxugava com uma toalha felpuda e alva como a certeza da fidelidade e, embora cansado, sorria como se tivesse acabado de nadar dois mil metros em um mar de rosas.
- Não. Você não dá conta, Caldeira. Nadou muito hoje. Na sua idade, não é bom facilitar as coisas. Você tá muito caído, meu velho – disse Bruno, que costumava associar os prazeres a pequenas humilhações dirigidas a quem, direta ou indiretamente, os havia proporcionado.
- Pois eu dou no couro, amigão. Garanto que venço você agora. Três a zero, valendo um uísque 30 anos. Topa? – Caldeira reagiu.
– A grana é sua. Vamos.
Bruno não fez corpo mole. Pelo contrário. “Enrabei sua mulher literalmente e, agora, vou foder você”, ele pensava.
A cada saque, exigia de Caldeira mais do que um garotão de 18 anos pudesse dar. Dava tapas na peteca com efeitos inacreditáveis, jogava-a em espaços impossíveis, pulava a alturas inimagináveis para cravá-la no rosto do colega de trabalho, que, ofegante e atordoado pelo empenho absurdo do adversário, não conseguia desviar as cortadas.
Perto de completar o último ponto, Bruno observou que Caldeira arfava mais que o normal, mesmo para um sujeito de 54 anos, barrigudo e bebedor inveterado de uísque. A vermelhidão do rosto dele saltava aos olhos, a 15 metros de distância, e certamente nada tinha a ver com o bronzeado ou com as petecadas que levara.
– Caldeira, você tá legal? – Bruno gritou.
- Eu...
Caldeira caiu com a velocidade de um saco de batatas solto propositalmente, longe do caminhão, por um estivador irritado com a excruciante jornada de trabalho. Produziu um barulho choco, mas audível e de provocar arrepios a quem o escutasse, no cimento pintado de verde – provavelmente advindo da fratura do nariz ou do maxilar.
Duas meninas que acompanhavam o jogo soltaram urros histéricos, antevendo o que se seguiria. Bruno correu em direção ao corpo estatelado de Caldeira e constatou, enquanto se aproximava, que ele não mais arquejava.
- Puta que o pariu! – ele disse, olhando em seguida para os lados e, para aumentar seu desespero, identificando Francilene, em pé, em frente ao bar, transparecendo no rosto um inegável quê de congratulações, de admiração e até de tesão pelo que ele, supostamente de forma dolosa, havia acabado de fazer.
- Francilene!
Ela correu para os dois corpos, o do amante, vigoroso, e o do marido, esparramado no chão.
- Deixa que eu cuido de tudo, tá? – ela sussurrou no ouvido de Bruno. Deu-lhe um beijo molhado e uma inesperada lambida na bochecha, antes de começar a chorar exageradamente e quedar-se sobre o defunto, dirigindo apelos aos céus.
- Por quê? Por que, meu Deus? - ela gritava, os olhos cheios de lágrimas, um deles piscando de leve para o aviador.
O Banho - 1994

Que diabos a mulher e a filha mais velha estariam fazendo que não se dignavam a atender a porra do telefone?
Não teve jeito. Molhado e com frio, Adroaldo saiu do banheiro dirigindo imprecações aos "inúteis" da casa quando deu-se conta de que estava sozinho. "Será que a Maria saiu com as meninas sem me dizer nada?", perguntou-se, a caminho do escritório.
O telefone esgoelava e, com o mesmo humor que deixara o chuveiro, ele finalmente o atendeu.
"Puuuuiiiiii, priiiiiiii, pruiiiii".
Era aquele inconfundível e detestável linguajar de fax, ansioso por obter a resposta de outro. Um aparelho metido à besta comunicando-se, ou desejando fazê-lo, com um parente.
Adroaldo soltou os usuais palavrões contra o interlocutor eletrônico – ele achava um absurdo que as pessoas que lidavam com faxes não se preocupassem em saber, antes de programar as máquinas, se haveria alguém de carne e osso do outro lado da linha para dizer se podia ou queria receber o que quer que fosse. Mas, como sempre, engoliu a raiva e fez o que a máquina pedia.
Ligou o computador, abriu o aplicativo de fax e sentou-se para, pela enésima vez, assistir àquela inexplicável, quase mágica operação. Como é que podia acontecer? Um monte de sinaizinhos sonoros, acumulados em um ruído estridente, aparentemente sem lógica ou significado, transformar-se em letras, frases, palavras, desenhos – e fotos, o que era mais assustador.
"Pixchhhhhhhhhhhhhhhh".
Adroaldo esperou o fim da transmissão e voltou a admirar-se com a peculiar despedida das duas máquinas. Levou o cursor do mouse para o comando "View", clicou (outra coisa impressionante, sem dúvida!) e esperou que a mensagem recém-chegada aparecesse na tela à sua frente.
"Sr. Adroaldo Teixeira Matos, filho de Dona Dalva e Seu Licurgo, comunicamos seu passamento. O senhor teve um piripaque (mais precisamente, um infarto agudo e fulminante do miocárdio), enquanto tomava banho. Calma! Não entre em pânico ou deixe temor e dúvidas invadirem seu ‘coração’, pois tal desespero só dificultará uma entrada sem percalços no que, na falta de descrição melhor, chamamos de outra dimensão. O senhor ficará bem! Aguarde novo contato, desta vez pessoal, de um de nossos emissários. Obrigado, fique em paz e lembre-se: quando a montanha acaba, devemos continuar subindo..."
Adroaldo deu uma gargalhada. Quem poderia ter tramado uma brincadeira daquelas? "Maria, Maria, vem ver o fax que eu recebi!", gritou, esquecendo-se que a mulher e as filhas não estavam em casa.
Ou estavam?
Ele ouviu vozes e percebeu uma grande agitação. Pelado e ainda com frio, tampou o pinto com as mãos e foi ver o que acontecia.
De trás da porta da sala, espreitou Maria, sentada no sofá. Ela chorava copiosamente, enquanto os irmãos e cunhados tentavam confortá-la.
"Que tá acontecendo, Maria?", ele berrou, com a cabeça para fora do esconderijo. "Um cara tão forte e tão novo...", comentava o Carlos Alexandre, marido da Clara.
"Foi pá e pimba, não deu tempo nem de levar pro hospital", emendou o Rodrigo, vizinho do 703.
Adroaldo entendeu tudo e voltou a soltar os bofes:
"Porra, para com essa choradeira, gente, olha eu aqui!", disse, chutando o ar e pulando pela sala, sem vergonha de estar pelado, na esperança de que notassem não só sua presença, mas também sua vitalidade.
"Ele me devia uma bolada, mas agora, me diga, com que cara eu vou cobrar da viúva?", sussurrava em um canto o Clésio, colega de Adroaldo dos tempos de faculdade e, por infeliz acaso, também morador do prédio.
"Dá um tempo, deixa passar a missa de sétimo dia e fala com a Maria", ajudou-lhe o Dr. Pedreira, o advogado do 701.
Àquela altura, Adroaldo estava desesperado mesmo, sentindo palpitações e tonteiras, embora soubesse, no âmago, que tudo era fricote (afinal, se aquele pesadelo fosse realidade, não tinha mais coração, pressão sanguínea ou sistema nervoso que corroborassem os sintomas histéricos)...
Renato parou de escrever a historinha e esticou-se na cadeira. Era tarde. Érika e as meninas dormiam e o silêncio seria completo, não fosse o roncar do computador. Desligou a máquina e foi tomar banho, pra dormir relaxado. No chuveiro, assoviava e ensaboava-se quando sentiu uma forte dor no peito. O telefone tocou...
sexta-feira, 4 de março de 2011
MIF
O universo estava prestes a entrar na Idade da Reversão, período que duraria os mesmos bilhões de anos até aquele momento e o faria reduzir-se, aos poucos, a um minúsculo ponto de singularidade, feito de matéria hiperconcentrada e perdido no Vazio (embora não houvesse alguém para encontrá-lo). Dali em diante, era impossível prever quanto tempo levaria até que, mais uma vez, houvesse o sopro, o clic na chave do reator invisível. Outra gigantesca explosão ecoaria pelo Nada, dando início à enésima volta no ciclo intérminável dos acontecimentos – àquele caos motocontínuo de luzes, gases, matéria escura e poeira cósmica que iria se organizando, com o passar do recém-criado tempo, em galáxias, estrelas, planetas e seres vivos, inteligentes e/ou estúpidos. Tudo isso tentando, em diferentes níveis de complexidade e com as mais diversas estratégias, afastar-se a uma distância segura do indefectível Verbo. E então, frustrada ao final da correria, a família universal, como em incontáveis ocasiões, sucumbiria num único instante ao derradeiro e repetido colapso. E assistiria ativamente à contração de seu lar, revivendo ao contrário a enganosa escapada pelo espaço-tempo.

Dominus, o andróide, olhava fixamente o cronômetro quasárico no laboratório central de Zelgrub, em uma das milhares de câmaras intraterrenas do planeta, a leste das escarpas de Calixus. Ele sentia no peito algo bem próximo à Angústia – doença psicofísica que lhe fora relatada inúmeras vezes por humanoides de diversos planetas, e cujo sintoma mais comum era "um enorme bolo de vazio no plexo solar". Era estranho o sentimento de que todos os seres "superiores" à base de carbono sintético ou verdadeiro, ambos dotados de pensamento (e os últimos capazes de criar vidas artificiais como a sua, a partir da prática da matemática combinatória), estivessem ausentes naquela hora. Todos mortos. "Solidão", pensava Dominus, enquanto ajustava obsessiva e inutilmente controles no painel à sua frente. "Solidão com uma boa dose de medo", balbuciou, conclusivo.

Na superfície do globo, contudo, havia uma contradição fundamental ao raciocínio do androide. Em uma tenda de fibra de vidro reluzente na quietude desértica, sob os raios de Cintila, a estrela do sistema G-232, abrigava-se um homem; não um calixusiano, mas um terráqueo. Bêbado por doses e mais doses de cartúnia, com olhos enfadados passeando eletricamente pelos cantos, como que à procura de mosquitos inexistentes, Malt Stuponic soltava um filete de saliva pelo canto da boca, enquanto pronunciava, com dificuldade, palavras ininteligíveis até para si mesmo. "Bltassnersdtst", era o que se podia entender. Um som agudo e sincopado vinha do relógio em seu pulso. Era como uma marcha fúnebre, eletrônica e minimalista, marcando os segundos finais do universo como o próprio medidor de tempo o concebia. Mas Stuponic não dava atenção. Estava mais sintonizado com o grande, frio e inelutável Destino que o aguardava, e a tudo o que conhecia, do que com qualquer outro pensamento. "Fim", ele finalmente pode ouvir-se.

Ex-funcionário do Instituto Quasar de Pesquisas do Caos (IQPC), o último ser de carbono verdadeiro do mundo ainda vivo e pensante sabia que, dali a pouco, começaria, grosso modo, a encolher, num trágico e lento processo de rejuvenescimento. Antes mesmo de ser um bebê, se ainda estivesse respirando, Stuponic passaria fome, sentiria mais terror do que naquele momento e, o que é pior, não encontraria pai, mãe, tios, avós, primos, irmãos, sobrinhos, sobrinhas, amigos ou inimigos para diminuir seu desconforto. "Fim", ele repetiu. Stuponic pegou outra garrafa de cartúnia e abriu-a com os dentes amarelados que, de podres, não resistiram e se quebraram. Cuspiu porcamente os pedaços e levou a bebida à boca. Foi uma longa talagada com os olhos apertados, dos quais lágrimas insistiam em escapar.

Em Zelgrub, Dominus pensava seriamente em recorrer a uma garrafa semelhante à tomada, naquele mesmo momento, na superfície de Calixus, pela corporificação da antítese à ideia de que estaria sozinho no universo. Tamborilando os dedos nas botas luminosas e esfregando o baixo ventre com a outra mão, o androide relutava em abrir o congelador, para o qual olhava fixamente. Ele titubeou ainda por alguns segundos – pensou nos porres de Gerhdt, seu mestre, e nas bordoadas que dava na esposa após algumas doses. Mas isso não o impediu. Deu um longo e saudoso suspiro e retirou nervosamente a garrafa do compartimento gelado, onde se lia "Faça uma boa viagem". Convicto de que seria um excelente remédio para a Angústia, Dominus sacou a rolha e sugou o líquido de uma só vez com um canudo, pelo arremedo de boca que haviam projetado para seu rosto. Finda a operação "boa viagem", atirou a garrafa na parede e relaxou na poltrona, exatamente como fazia Gerhdt, antes de matar-se. Aliás, foi esta a imagem que ocorreu à conturbada mente do androide. O corpo do mestre esticado sobre a cama, ao lado da esposa e do filho de cinco anos, todos mortos pela ingestão dos comprimidos "Além".

Tão logo os cientistas do IQPC anunciaram a comprovação da permanência da alma após a morte, oito luas cheias de Calixus antes daquele dia, todo o mundo correu às farmácias para comprar os tais comprimidos, que garantiriam uma entrada sem problemas no "reino encantado do além", como dizia a bula. Até os androides, os superinteligentes bichinhos de estimação dos humanoides, haviam embarcado na febre do post mortem – o pessoal do IQPC afirmara que mesmo produtos da biotecnologia poderiam possuir almas resistentes à inativação dos corpos, desde que "desenvolvidas" em complicadas práticas ascéticas. O suicídio coletivo fora completo, em todos os planetas do universo. Isso porque, no dia seguinte à descoberta da "vida após a vida", os mesmos cientistas revelaram a data e a hora de início do temido processo de reversão, o Big Crunch, cinicamente apelidado pela mídia intergalática de Bang Big. Por obra de Deus, ou fosse lá que força misteriosa comandava aquela bagunça toda chamada universo, no entanto, sobraram um homem bêbado e decadente e um androide psicotizado, que acabara de enveredar pelo caminho do álcool. Um sem saber da existência do outro.

Stuponic largou a garrafa de cartúnia na mesa à sua frente e tombou, salivando e ruminando palavrões contra si mesmo. Ele sentia um misto de tristeza e loucura que jamais experimentara em sua torpe vida de cientista. "Caralho!", gritou. "Sempre achei graça em tentar prever as coisas, hic, agora sei exatamente o que vai acontecer comigo e, hic, estou ficando louco", ele disse – ou, melhor, pensou nisso e tentou dizer. O terráqueo dormiu por umas oito horas e acordou espantado, sentindo-se alguns segundos rejuvenescido – o Bang Big tivera início. A sensação de reversão só não livrou-o de amargar uma dor de cabeça cósmica. "Preciso dar uma volta e encontrar comida", pensou.

O único humano ainda vivo nas faces de todos os mundos do mundo entrou em seu módulo para viagens de curta duração, deu a partida e planou sobre o deserto como uma águia faminta. Stuponic tinha a esperança de encontrar uma escotilha aberta na planície – uma passagem que algum caluxiano mais afoito, na ânsia de morrer, tivesse esquecido de fechar. Depois de voar horas e horas, tomando-se o sentido inverso dos relógios analógicos, claro, ele finalmente avistou uma abertura, 200 metros abaixo de onde estava. Quando preparava-se para aterrissar, viu um ser de macacão prateado deixando a fenda e mirando, aparentemente tão surpreso quanto ele, o aparelho no céu. Emocionado, Stuponic perdeu o controle da nave, que entrou em espiral durante a descida e chocou-se violentamente contra o chão. Dominus observou a cena, tirou do bolso um aparelho de detecção de vida que, apontado para os destroços, a poucas dezenas de metros de onde se encontrava, recusou-se a emitir o sinal positivo. O androide deu de ombros e entrou pela escotilha. A porta se fechou. "Solidão", ele queixou-se, esfregando a mão em seu suposto plexo solar.
domingo, 27 de fevereiro de 2011
Do jeito que você queria
“Olá, minha amiga, meu amigo; você que está em casa agora cedo, nos assistindo, porque quer caprichar no seu almoço ou no jantar de hoje à noite ou de qualquer dia da semana, quer surpreender a família, os amigos, levar um pouco de requinte à mesa, mudar a sua rotina, sair daquele arroz com feijão, bife, salada, batata frita – uma comida muito gostosa, sem dúvida, mas que vai deixando a gente acostumado, conformado, imaginando que pratos diferentes são algo de outro mundo.
Olá, queridas donas de casa, mulheres que trabalham dentro e fora de casa, e que não abrem mão de ir pra cozinha pra se realizar e satisfazer seus entes queridos. Um alô especial aos homens que também são, por vezes, donos de casa, cozinheiros, que fazem os pratos deliciosos degustados por suas famílias e gente próxima, que moram sozinhos ou, às vezes, com companheiros ou com companheiras, e que também querem dar aquele toque especial à refeição do dia a dia. É muito bom isso, não é?
É para todos vocês que a gente faz este programa Delicioso, com muito amor, muita dedicação, muito carinho. Nosso objetivo, sempre, é fazer a vida de todos vocês mais feliz.
Hoje, abrindo a semana, que certamente será uma semana abençoada pra todos nós, a receita que a gente vai apresentar é simples, mas riquíssima em sabor e sofisticação. Vocês vão ver.
Trata-se de um prato que, quando você o pede em um restaurante refinado, por exemplo, imagina que tem um monte de segredos, ingredientes caros, um prato que demanda muita experiência em gastronomia e um bocado de dinheiro. Mas, não, amigas e amigos. É uma delícia, mais uma delícia do seu programa Delicioso, que está ao seu alcance e ao alcance da sua família, da sua companheira, do seu companheiro, dos seus filhos, pais, primos, tios, dos seus amigos e amigas, enfim, de todos a quem você ama.
É um acepipe que qualquer um, com carinho, pode preparar! Não se gasta muito nele e fica pronto rapidinho. Do jeito que você queria, tenho certeza. Vocês vão ver. Estou falando do risoto de...”
Alex não estava muito inspirado.
Manhãs de segunda-feira, nos últimos 15 anos, jamais haviam sido as melhores para o show de culinária diário de uma hora que ele apresentava na Rede Você, Canal 32 – o Delicioso, um dos maiores sucessos da TV por assinatura, pelo menos em Belo Horizonte e cidades da região metropolitana. Além disso, a noite de domingo havia sido bem complicada: Mariana o levara a um inferninho de endinheirados, na Savassi, porque queria dançar e tomar champanhe. Mas ela dançava o tempo todo no trabalho: era uma das bailarinas/assistentes de palco do programa de variedades também diário de Joca Mayrink, no mesmo Canal 32. E ele não entendia como a namorada de 22 anos podia gastar as preciosas horas de descanso e lazer fazendo a mesma coisa.
Cansado da manhã e da tarde pedalando a mountain bike em Nova Lima, ele, do alto de seus quase 50, pensou mesmo em não ir. E em proibi-la de ir.
Sexo em casa, uma transa gostosa, mas sossegada, seria bem mais bacana. Mas aí os dois teriam uma daquelas brigas feias e ele não estava a fim de criar um inferno. Era preferível o inferninho.
Poderia também ter permitido que ela fosse sozinha, mas Mariana era bonita demais, perfeita demais, nova demais, boba demais, e seria presa fácil em meio a todos aqueles playboyzinhos de merda que batiam ponto na casa noturna.
Nem no céu ele a deixaria desacompanhada. Mesmo anjos, que não têm sexo, segundo dizem, certamente se interessariam por ela e tentariam alguma coisa. E se fossem anjos com um pouquinho de inteligência, bom papo, algum charme, grana e, principalmente, corpos sarados, daqueles que ele a flagrava seguindo com os olhos e admirando, sob os óculos escuros, no clube, não teriam dificuldade em levá-la para a cama. Era o que ele imaginava e temia, mais que tudo.
“...do risoto de abóbora com carne seca. Uma receita fácil e rápida. Rápida mesmo. Olha só: pra começar, a gente passa pra vocês a lista dos ingredientes: são 500 gramas de arroz – tem de ser o arroz arbóreo, tá?, que você encontra em qualquer supermercado e é mais indicado para risotos; 100 ml de caldo de legumes, e é muito importante que seja um bom caldo de legumes, porque é nele que vocês vão cozinhar o arroz; 500 gramas de carne seca desfiada, um ingrediente que você também encontra em qualquer açougue ou supermercado; 400 gramas de abóbora moranga, aquela que em algumas regiões do Brasil, principalmente no Nordeste, as pessoas chamam de jerimum... (e eu lembro que a abóbora deve ser bem picada, tá?); 50 gramas de queijo parmesão ralado; pode ser aquele queijo de saquinho ou, então, se você preferir e encontrar, o parmesão em peça, pra você ralar em casa; fica até mais gostoso, né?; duas colheres de sopa de manteiga – pessoal, a manteiga é um dos ingredientes principais dos risotos; conheço chefs que usam potes inteiros, o que, obviamente, não é nada bom para o colesterol, mas deixa os pratos uma delícia! –; uma cebola picada em quadradinhos, não em julienne ou em rodelas; e pitadas que bastem de pimenta do reino. Ah, sim, já ia me esquecendo: também vamos usar meio copo americano de... cachaça! Isso mesmo: cachaça!
Deu pra anotar aí, pessoal? Se não, não tem problema, porque o Marquinhos, nosso diretor, vai passar pra vocês na tela a lista completa dos ingredientes. Enquanto isso, e enquanto eu douro a cebola em dois ou três fios de azeite e começo a cozinhar o arroz aqui, até ficar soltinho, pra então jogar o nosso meio copo americano de cachaça na panela, vou contar pra vocês um pouco da história do risoto. Daqui a pouco vou colocar a abóbora picada em cubos nessa mistura, porque abóbora, gente, demora um pouco a cozinhar. Mas antes disso, teremos que esperar a cachaça evaporar e seguir cozinhando o arroz e, depois, a abóbora também no meu caldo de legumes maravilhoso, até ficar bem al dente, durinho, mas sem ser cru. Então, como eu ia dizendo, o risoto...”
Os dois conversavam com alguns amigos, no lounge do inferninho, antes de encarar a pista de dança, e Mariana foi pedir mais uma taça de espumante no balcão. Foi lá que encontrou um rapaz com o qual, aparentemente, tinha muita intimidade. Alex fingiu que não dava atenção aos sorrisos e à empolgação da namorada diante do garotão, mas ficou, de canto de olho, observando os corpos deles se encostando. Dois jovens belos, repletos de hormônios e desejo, se roçando. E um desses jovens era Mariana. Era Mariana.
“... o risoto é um prato que, segundo os historiadores, chegou à Europa no século 11, pela mão dos sarracenos. Sarracenos são aquele povo árabe, muçulmano, que ocupou a Península Ibérica, onde estão Portugal e Espanha, e também parte do que viria a ser a Itália em determinado período. Bom, entre outras influências, eles levaram muitas novidades culinárias pros europeus. E foi lá na região da Lombardia, no Norte da Itália, que surgiram, trazidos pelos sarracenos, esses grãos de arroz mais robustos, a que se dá o nome de arroz arbóreo. Bom, deixa eu mexer um pouquinho aqui porque a cebola dourou e o arroz está quase ficando no ponto que a gente quer, bem soltinho. A carne seca, eu a cozinhei e desfiei previamente, algo que não tem dificuldade, não é? Olhem aqui, nesse prato, como ficou uma beleza essa carne desfiada. Mais no final do preparo, vamos misturá-la ao nosso risoto...”
Quando Mariana voltou, com a champanhe, Alex não pode deixar de notar os mamilos intumescidos, o rosto corado, os perdigotos lançados no ar em "Oi, oi, amor", o que denotava excesso de salivação.
- Quem era o rapaz? – ele perguntou, sereno.
- Ah, um cara de Divinópolis que eu não via há um tempão. Fomos colegas de colégio –, ela disse, aérea.
Alex não quis saber se ambos haviam namorado. Estava na cara que haviam. Também não esticou a conversa sobre o reencontro. Deixara claro que havia percebido a reação dela e do garoto, fizera o papel de macho dominante; ela estava avisada.
Na pista de dança, ele dava os passinhos desanimados de sempre, mantendo o sorriso falso com que boa parte das pessoas se arma em pistas de dança, e via, preocupado, Mariana interpretar sua personagem mais sensual. A três corpos de onde ela requebrava, o rapaz de Divinópolis, o maldito garanhão interiorano, também se mexia bastante e fazia movimentos semelhantes ao do momento do coito, sem tirar os olhos dela. Mariana arredou sutilmente para o lado, na direção do ex-namoradinho. Alex a acompanhou, já sem se importar em parecer que dançava, mas nada a fazer ou dizer lhe ocorreu para evitar que a companheira esbarrasse no sujeito.
Ele disse alguma coisa no ouvido dela. E ela respondeu.
A leitura labial que Alex fez, já que a música estava altíssima, indicava, também apesar de atrapalhada pelo lusco-fusco das estroboscópicas da pista de dança, que ela havia combinado algo muito sórdido com o amigo dos tempos de colégio. O cozinheiro teve certeza de que a mensagem foi “eu quero muito você, mas precisamos nos livrar do coroa. Daqui a uma hora, me encontre na esquina da Getúlio com...”. Foi a convicção dos paranoicos, não a dos exímios leitores de lábios. Mas a lascívia com que ela encostou a bunda no baixo-ventre do garoto, ao se voltar novamente para Alex, pareceu corroborar o que ele havia lido.
“... misturá-la ao nosso risoto. Esse risoto de abóbora com carne seca, que leva cachaça, é, claro, uma invenção bem brasileira. Mas, pelo que a história nos conta, gente, a primeira receita consagrada de risoto, não sei se vocês sabem, tem sua origem por volta de 1570, na Comuna de Milano, justamente na Lombardia. Isso é onde fica hoje a cidade de Milão, que todos conhecemos graças à moda, aos times de futebol, Inter e Milan, não é?, à arquitetura, à arte e, certamente, à rica culinária. Pois bem.... Espera um pouquinho que o arroz está no ponto aqui pra eu derramar o copo de cachaça. Vejam como ferve. E a gente mexe um pouco e logo, logo o álcool evapora. Olha que beleza...”
Os dois continuaram dançando mais alguns minutos até começar um funk pesado, desses cariocas, que eram apreciados por uma parcela significativa dos riquinhos que frequentavam a casa noturna na Savassi. Mariana, por sorte, e a despeito de sua origem humilde, não gostava daquele tipo de música. Alex, que escutava Mahler e Debussy no MP3 do Honda do ano, nos engarrafamentos de Belo Horizonte, agradecia a Deus por isso. Os dois voltaram de mãos dadas ao lounge, sob gritos animalescos de quem se sentia embalado por aqueles sons e palavras.
– Amor, hoje eu não vou pra casa com você. Preciso dar um pulo no meu apartamento. Eu me lembrei de que tenho um monte de coisas pra fazer por lá. Molhar minhas plantas, separar umas contas. Você fica muito chateado? – ela disse, de um jeito doce.
Alex sentiu o pedido como um murro no estômago. O plexo solar dele virou uma bolha de vácuo, o coração acelerou e o suor brotou como se ele estivesse se transformando em um rio.
Pânico à parte, reuniu forças para responder:
– Tudo bem, meu sonho! – a palavra que ele queria dizer era pesadelo, mas se conteve. – Deixo você lá. Vai ser até bom porque estou muito cansado, a semana será puxada e, depois de horas passeando de bicicleta, preciso dormir. Dormir, sabe? – ele falou, também com doçura.
Mariana sorriu, angelical, e sugou o canudinho da água tônica com limão, passeando os olhos pelo ambiente como se não estivesse procurando nada de especial.
“...que beleza. Mas, então, durante a construção de uma capela, a Duomo di Milano, uma comunidade belga de vidreiros, estabelecida numa fazenda próxima, ficou incumbida de fazer as janelas, os vitrais do monumento. E muitos estudantes dessa arte de fazer vidros coloridos, que na época era uma arte muito respeitada, foram pra essa comunidade, como que para fazer um estágio, entendem?... Bom, agora que a cachaça evaporou toda, eu dou mais uma mexida e finalmente jogo os pedaços de abóbora. Agora, sim, eles vão cozinhar direitinho e por um bom tempo à medida que vou jogando o caldo de legumes, para não secar...
Mas, como eu ia dizendo, e vou continuar falando, enquanto deposito os cubos de abóbora... Como eu ia dizendo, um desses estudantes tinha uma técnica muito bacana: ele misturava açafrão, isso mesmo, açafrão na areia que resultaria no vidro. Com isso, o rapaz obtinha uma coloração amarela maravilhosa no vidro. O mestre da vidraria, um sujeito muito brincalhão e até um pouco chato com os estagiários, como a maioria dos chefes, não é?, ficava dizendo pra esse estudante: desse jeito, garoto, você vai acabar misturando açafrão no nosso risoto! E ele ria muito disso. Sim, porque já se comia risoto, mas era um arroz sempre branco,e ninguém imaginava adicionar um corante ou uma especiaria tão peculiar como o açafrão no arroz... Esse rapaz, pra se vingar das brincadeiras do mestre... Vejam só como eu vou banhando o nosso risoto e a abóbora com o caldo de legumes. É pra evitar que seque. e continuar cozinhando. Daqui a pouco eu adiciono a manteiga, tá?... Mas o rapaz...”
Alex deixou Mariana na porta de casa. O apartamento, em um prédio antigo de três andares na Rua Pernambuco, ficava no segundo pavimento e, como sempre fazia, embora lutando para não deflagrar uma ruidosa discussão com a namorada, ele apenas disse “até mais, meu amor” e pediu a ela que entrasse. Ele aguardaria que Mariana acendesse a luz da sala, de frente para a rua, duas vezes, ligando e desligando o interruptor, para ir embora.
Os dois se beijaram rapidamente e ela desceu, rebolando, deliciosa, linda como sempre. Antes de abrir a porta principal do edifício, Mariana mandou-lhe um beijo, tocando a palma da mão direita com os lábios carnudos e a estendendo em direção ao automóvel. Também como era hábito, Alex fingiu que colheu o presente no ar e que o engoliu.
Assim que ela saiu do seu campo de visão, o cozinheiro endureceu o semblante. Deu a partida no carro e iniciou a volta pelo quarteirão. Segundos depois, estacionou na Rua Inconfidentes, desceu do Honda e foi para a esquina, onde, debaixo da marquise de uma lanchonete fechada, acendeu um cigarro e pôs-se a esperar, observando o edifício.
A sensação de um soco no peito ressurgiu logo, assim que ele a viu deixando o prédio.
“...o rapaz resolveu se vingar. Depois de anos de chateação com a história de que o açafrão poderia acabar indo parar no risoto, ele subornou o cozinheiro da fazenda para que adicionasse açafrão no prato que seria servido na festa de casamento da filha do mestre da vidraria... Opa! Veja que o nosso risoto está chegando ao ponto ideal. Al dente, mas cozido. É hora de adicionar a carne seca fatiada e misturar bem.... A abóbora está desmanchadinha, dando aquela cor especial .. O próximo passo; vou misturando a carne aqui, verificando a consistência; o próximo passo é colocar a manteiga, aquelas duas colheres de sopa de manteiga... Isso, vou mexer mais agora, em fogo brando. Desde o o início, estamos com fogo brando, tá, gente?.... “
– Mariana! – ele gritou.
Ela não se virou. Estava com fones de ouvido, provavelmente escutando Sexual Healing, que adorava, no iPod que Alex lhe dera de presente. O cozinheiro a seguiu, guardando distância de poucos metros. Mariana subiu a Rua Pernambuco e, ao chegar à Cristóvão Colombo, parou, bem em frente ao McDonalds. Ela começou a olhar para os lados, ansiosa.
Alex tirou do bolso interno do Armani uma pequena faca de cozinha Saladini, importada, própria para queijos, que levava como um amuleto onde quer que fosse. Aproximou-se de Mariana por trás e deu uma estocada na carótida dela.
– Pronto. Do jeito que você queria – sussurrou, apertando os lábios contra a bochecha macia e cheirosa da namorada.
Mariana gritou, o sangue jorrou e ele correu.
“... tá, gente?... Bom, mas aí o cozinheiro fez o que o rapaz pediu e o risoto servido no jantar do casamento ficou estranhamente amarelo. O mestre achou aquilo um absurdo, mas logo se acalmou, ao ver que todos estavam se deliciando com o arroz, apesar da coloração e do sabor modificados. Nascia assim o famoso Risoto Alla Milanese, uma receita muito famosa até os dias de hoje... Legal, não é?.... Bem, mas nosso risoto já está praticamente pronto. Agora, antes de desligar o fogo, eu acrescento o parmesão ralado e a pimenta do reino e vou salpicando e misturando, salpicando e misturando.... Opa! Parece que temos visitas ilustres aqui hoje. São uns homens fardados. E parece que há um de terno também., com cara de delegado. Por favor, senhores, venham aqui pra frente das câmeras. Venham, não se acanhem. Não vou deixar vocês irem embora sem experimentar esse prato... Isso mesmo, esse prato Delicioso!...”
segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011
Gloriosa
A “vagina gloriosa” existe e um cara pode ter o privilégio de encontrá-la duas, três, até quatro vezes na vida. Mais que isso é exagero. Talvez até aconteça, mas, nesse caso, ou o sujeito é muito sortudo ou é daqueles que se fartam de mulheres sem muito critério, a ponto de não distinguir tipos de vaginas – o que, obviamente, obnubila o reconhecimento da gloriosa.
Experimentei o prazer, na ausência e na não necessidade de usar outra palavra, de ter com essas genitálias raras em duas ocasiões nos meus quase 30 anos de vida sexual ativa.
Ou seja, até agora.
Espero, ansiosamente, portanto, me defrontar com mais uma ou duas!
Mas vou contar como foi a primeira vez.
A mulher em questão é uma, digamos, artista. Uma alma boa e excêntrica mais velha que a minha uns duzentos anos, cujo corpo que habita também supera o meu em uns 15 anos.
Uma loba faminta, como ela mesma se definia.
(Cabe aqui um esclarecimento importante para a hermenêutica da vagina gloriosa: a mulher que a ostenta não precisa ser gostosa, linda, maravilhosa, nova, de meia idade, velha... Nada disso! Pode ser até um bucho, uma derrotada, uma fêmea aparentemente alijada do jogo do sexo. Não importa! O que importa é que, quando a gente adentra a cavidade esplendorosa dela, e ela, a mulher, deixa aflorar sua estonteante lubricidade e começa a operar um pequeno milagre no pau e no cérebro da gente, o mundo gira mais rápido, tanto que ganha novas cores e dimensões).
Mas a minha artista não era feia, não.
Pelo contrário: tinha um corpo bem feito e muito conservado, para a idade e em razão do fato de que tinha dois filhos bem grandinhos já. Era dona de traços finos e de uns olhos maravilhosos, levemente esverdeados e ensolarados, calmos como mar de almirante. Eu os descrevia para ela, também sem muita originalidade, mas com sinceridade, como “janelas de uma alma antiga”. Pareciam isso mesmo.
E a artista, paradoxalmente, apesar dessa espiritualidade toda que banhava o mundo através dos olhos, acabou revelando um furor sexual que me deixou quaaaase constrangido quando a gente transou.
***
Descobri que ela tinha uma vagina gloriosa logo no primeiro dia em que nos vimos!
Digo isso porque a gente começou a se seduzir bem antes, por mensagens.
Vale a pena contar, porque foi uma coisa curiosa: frequentávamos regularmente uma loja de aluguel de livros, na Savassi, em meados dos 80 – um tipo de empreendimento que, infelizmente, não existe mais. E percebemos ali, a princípio, que tínhamos o mesmo gosto literário. Baseados nisso, embora nossas visitas ao local nunca coincidissem, começamos a deixar papéis escritos à mão com pequenos textos nas páginas 69 dos livros, dirigidos a nós mesmos.
Claro, contávamos com a ajuda da dona da loja, que nos dizia que livro eu ou a artista havíamos alugado por último, e assim a gente podia trocar os bilhetes. Como o lugar era pouco movimentado, nunca houve confusão, do tipo meu papel ou o dela ser lido por outra pessoa.
Fato é que, pelo conteúdo que essa “conversa” foi adquirindo, logo surgiu entre a gente uma paixão fodida, um furacão de tesão e paudurescência, de joguinhos de frases inteligentes toma-e-volta, de declarações subliminares de amor kamassútrico até promessas explícitas de vou te foder toda, sua delícia, e de vou chupar você como nenhuma outra chupou, seu filho da puta.
Mensagem vai, mensagem vem, deu-se que marcamos um almoço.
Embora já a tivesse visto por fotos – chegamos a colocar fotos dentro nas páginas 69 dos livros – fiquei bastante impressionado com a aparição em três dimensões daquelas carnes.
E uma das coisas que mais me chamaram a atenção, além do bom estado geral para a idade, foram os cabelos encaracolados volumosos, de um vermelho gritante.
Com uma brancura britânica, daquelas que deixam à mostra as veias na tez pálida, ela me pareceu uma cópia da tal Boadiceia dos Icenos, a rainha guerreira ruiva, celta, de olhos doces e de espírito sábio, mas que emanava uma gigantesca e alucinante energia animal: garras de unhas negras e a voz grossa, que até hoje retumba na minha cabeça, de uma leoa que pode ser bem malvada quando o assunto é a alcateia – grupo do qual, aparentemente, eu começaria a fazer parte.
O perfume da minha artista (Floratta, eu descobri depois) e a minissaia diminuta e pouco apropriada para uma mulher de quase 40 anos, conforme a elucubração idiota que fiz no momento em que a vi, também me tiraram do sério.
“Nuh”, eu disse, alumbrado, no restaurante.
E ela sorriu, enlevada, os olhos quase revirando, porque o meu “Nuh”, uma espécie de interjeição de arrebatamento que me era bem característica nas mensagens enfiadas nas páginas 69 dos livros, a deixava louca de tesão.
Depois do almoço, um filé de frango meio sem graça com purê, arroz e salada, corremos para um motel, na BR-040, saída para o Rio de Janeiro.
Além da vagina gloriosa, ela tinha carro!!!
Chegando lá, foi aquela história: primeira trepada, ambos nervosos, sem saber como começar. Mas, passados uns cinco minutos de beijos desajeitados, saquei que a artista era uma artista ali na cama também.
No sexo oral com o qual ela me presenteou, os lábios dela, firmes, empurravam a pele do meu pau e deixavam à mostra a glande, que ela acariciava com a língua macia que parecia até bifurcada, tamanha a precisão e a variedade dos movimentos; depois, com a mesma pegada forte dos lábios, ela trazia a pele de volta ao topo. E fez isso inúmeras vezes, para cima e para baixo, sempre salivando e gemendo.
Eu mal sabia que o melhor, se era possível, ainda viria.
E veio.
Depois de alguns minutos de um prazer sem igual, ela ergueu a cabeça, fogo nos olhos, as narinas dilatadas, e, com o corpo suado, escorregou em direção ao meu rosto. A vagina gloriosa, que eu ainda não sabia que era gloriosa, foi pressionada na minha perna no trajeto e deixou um rastro molhado e deliciosamente quente.
Ela me deu uma lambida não muito demorada na boca e, para minha surpresa, continuou a escalada, apoiando as mãos na cabeceira da cama. Os seios grandes e brancos rasparam meu queixo, seguidos pela barriga proeminente, mas lindinha, que passou a curta distância dos meus olhos. E, finalmente, a vagina, que também me untara o peito, estacionou sobre os meus lábios.
Beija!, ela disse.
Fiz o que ela pediu sem pestanejar: um beijo apaixonado, a língua retorcendo na cavidade morna e cheirosa que ela me oferecia. A gloriosa, juro, parecia outra boca, encharcada, contraindo-se, pulsando, sugando e apertando meus lábios, enquanto ela rebolava e gritava de prazer, encaixada em meu rosto.
Eu estava quase no Nirvana quando ela ergueu o colo e o recuou, descendo de mim, claramente pronta para a penetração. Antes daquele momento, que seria uma espécie de acontecimento divino, a artista lambeu minha boca e minhas bochechas, impregnadas do sabor da gloriosa, com tanta volúpia que chegou a me morder.
Ela abandonou lentamente minha boca, como se não houvesse mais o que sorver ali, e olhou fundo nos meus olhos, dessa vez com um brilho de doçura.
“Você está preparado?”, perguntou, um tanto solene.
“Deus, mas é claro!”, pensei. “O que essa moça está pensando?”.
Seria ela a portadora de uma vagina dentada, mito presente em um dos livros que alugáramos na tal loja em que havíamos nos conhecido – “A Grande Arte”, de Rubem Fonseca –, ou algo do gênero?
Assenti, sem que houvesse de minha parte uma expectativa diferente da que se tem quando se está prestes a penetrar qualquer mulher que desperta a libido.
“Ah, seu incauto”, costumo dizer a mim mesmo, hoje.
O que seria uma transa fascinante, sem dúvida, transformou-se numa viagem alucinada e sem precedentes. Inesquecível.
Entrar na vagina gloriosa foi difícil: era muito apertada.
Mas sair dali foi muito mais.
Mais tarde, a artista me confessou que era praticante de pompoarismo, o que favorecia seu desempenho. Mas nem isso explicava a montanha russa em que meu pau e meu cérebro passearam.
Foram poucos minutos, admito, mas pareceu uma bela e eletrizante eternidade: o sincronismo e a orquestração do músculos vaginais, a mucosa ao mesmo tempo contritora e escorregadia, engolindo e mastigando meu pinto com um misto de força e delicadeza; a contenção mágica do nosso orgasmo simultâneo – ela parecia sentir a aproximação do êxtase e fazia um movimento que impedia nossa explosão –; a prolongação aparentemente infinita do prazer.
Depois dessa primeira transa, repetimos a dose em mais cinco ou seis ocasiões.
E nunca mais nos vimos.
Mas comecei ali minha conta de vezes em que tive com as gloriosas. A segunda, conto outra hora. A terceira e, Deus queira, a quarta, também relatarei.
Eu juro.
quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011
Eram os deuses astronautas?
Na época de menino, ele não entendia muito bem as coisas que o Pereira, o velho, e mesmo que o Pereira, o filho, diziam – coisas que pescava quando ia pegar uma tubaína de guaraná na conta da mãe ou comprar maria-mole no bar. Mas por algum motivo achara aquilo profundo, bonito, definitivo, e guardara pro resto da vida, ou do próprio soluço.
E foi na frase dita com frequência pelo Pereira Velho, geralmente quando se deparava com um diálogo filosófico labiríntico entre os habitués do bar, que ele pensou assim que chegou ao quarto do hospital. O quarto onde Viviane, a prima que regulava com ele em idade, lutava pra não sucumbir a um câncer que se havia espalhado e que tirara dela todo o vigor possível numa mulher de 40 e poucos anos.
Hoje, homem feito, ele sabia muito bem o que o dono do bar queria dizer.
Mas Paulinho não deu uma de Pereira Velho.
Não declarou de jeito solene que a vida é uma espécie de espasmo entre um grande nada e um nada enorme ao mirar com os olhos molhados a prima na cama do hospital. Não havia propriamente um debate filosófico ali, no qual fosse necessária uma intromissão intelectual e um encerramento aforístico, com chave de ouro.
Havia Viviane, moribunda e com os sonhos empalidecidos; e havia ele, aparentemente sem nada que pudesse dizer a respeito, mas com muita coisa a sentir, sentindo tudo o que se podia sentir ali.
– Vivi, lembra quando a gente era criança e imaginava portais mágicos entre as pilastras da sua casa, brincando de “Eram os deuses astronautas”?
Viviane assentiu com os olhos castanhos claros apertados, rasgos de luz que ela tinha desde pequena, mas que naquele momento insistiam em se fechar por mais que a luz lá de dentro brigasse pra sair. Paulinho continuou:
– Você ainda tem vontade de passar por um desses portais?
Ela cerrou os rasgos de luz, com um esboço de alegria. Ele retomou:
– A gente tinha lido o livro do Erich von Däniken e estava certo de que os incas haviam sido visitados por extraterrestres. Você lembra? Não sei se fui eu ou você quem acrescentou um ingrediente a mais na nossa fantasia: se a gente pensasse com força, muita força mesmo, um tipo de passagem se abriria entre as pilastras da garagem da sua casa. Daí a gente teria que cruzar o portal com confiança e fé, com os olhos fechados, e, se fizesse tudo direitinho, sairia do outro lado, em plena selva, entre pirâmides majestosas e cidades cheias de mistério, bem na época em que os deuses astronautas mandavam nos incas. Você lembra, Vivi?
Os lábios dela, secos e sem cor, se entreabriram, ensaiando felicidade. Paulinho prosseguiu:
– Mas a gente nunca conseguia! Não porque o portal fosse só uma invenção besta de criança, mas porque nunca tínhamos confiança e fé suficientes. E, principalmente, porque nunca tínhamos coragem pra fazer tudo direitinho, pra deixar a vida que a gente levava e surgir de repente no meio de uma selva exótica, pirâmides e deuses astronautas. A gente era bunda mole, né?
Um som eletrônico agudo e contínuo serviu de alarme para que duas enfermeiras entrassem afoitas no quarto. Elas colocaram uma máscara de oxigênio em Viviane e pediram a Paulinho que se retirasse. A mãe, o pai, os irmãos e o marido dela, ao lado da cama, choravam, à espera do médico.
Do corredor, Paulinho observou o desespero dos familiares e a partida de Viviane.
No primeiro andar do hospital, ao passar sob o pórtico da entrada, Paulinho fechou os olhos.
Confiança e fé, ele disse.